O capitalismo é um sistema econômico e social caracterizado pela propriedade privada dos meios de produção, que visam ao lucro e à acumulação de capital. Ele é impulsionado pela livre concorrência, onde os preços são definidos pela oferta e demanda, e a sociedade é dividida em classes: a burguesia (donos dos meios de produção) e o proletariado (trabalhadores que vendem sua força de trabalho).
Características principais
Propriedade privada: Os meios de produção, como fábricas e terras, são de propriedade privada, e não do Estado.
Lucro: A obtenção de lucro é o principal objetivo do sistema, incentivando a produção e o acúmulo de riqueza.
Mercado livre: A economia é regulada pela lei da oferta e demanda, com pouca intervenção estatal (embora isso possa variar em diferentes modelos de capitalismo).
Divisão de classes: A sociedade é dividida entre a burguesia, que detém os meios de produção, e o proletariado, que vende sua força de trabalho em troca de um salário.
Concorrência: A livre concorrência entre empresas busca otimizar a produção e a oferta de produtos, mas pode ser regulada por leis para evitar monopólios (cartéis).
O capitalismo surgiu na Baixa Idade Média, a partir do crescimento urbano e comercial na Europa, e passou por diferentes fases.
As principais fases incluem o capitalismo comercial (baseado no comércio e na exploração colonial), o capitalismo industrial (impulsionado pela Revolução Industrial e a produção em massa) e o capitalismo financeiro e informacional (marcado pela globalização e o domínio do setor financeiro e da tecnologia).
O capitalismo é responsável por um grande dinamismo econômico, impulsionando a inovação e oferecendo aos consumidores uma ampla variedade de produtos e serviços.
No entanto, a dependência do sistema da produção de matérias-primas também é associada a impactos ambientais significativos.
A desigualdade social é uma questão frequentemente no capitalismo, devido à concentração de capital e à relação de classe entre burguesia e proletariado.
Confira o artigo da autora Tahiana Alves
Estado da publicação: O preprint foi submetido para publicação em um periódico
Sofrimento psíquico na totalidade capitalista: experiências de
mulheres
Tahiana Alves
https://doi.org/10.1590/SciELOPreprints.4674
Submetido em: 2022-08-28
Postado em: 2022-08-31 (versão 1)
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SOFRIMENTO PSÍQUICO NA TOTALIDADE CAPITALISTA: experiências de mulheres
PSYCHIC SUFFERING IN THE CAPITALIST TOTALITY: women´s experiences
Tahiana Meneses Alves
https://orcid.org/0000-0003-1019-8746
Universidade Federal do Rio de Janeiro/Universidade do Minho
RESUMO: Foram analisadas experiências de mulheres com o
próprio sofrimento psíquico a partir de entrevistas com dez
usuárias de um serviço de saúde mental. A análise foi
fundamentada no método de Marx e na Teoria da Reprodução
Social. O sofrimento psíquico foi atribuído a conflitos na família;
à vida amorosa; à pobreza e seus desdobramentos; à
regulação do corpo feminino; às múltiplas violências sofridas.
Palavras-chave: Saúde Mental; Mulheres; Capitalismo
ABSTRACT: Experiences of women with their own psychic
suffering were analyzed based on interviews with ten users of a
mental health service. The analysis was based on Marx’s
method and on the Theory of Social Reproduction. Psychic
suffering was attributed to conflicts in the family; to love life; to
poverty and its consequences; to female body regulation; to the
multiple violence suffered.
Keywords: Mental Health; Women; Capitalism
INTRODUÇÃO
O estudo analisa as experiências de mulheres quanto ao próprio sofrimento psíquico.
O contexto mais amplo onde se desenrolam as experiências é o da Reforma Psiquiátrica
Brasileira (RPB). Esta é um processo social complexo que ocorre no país desde a década
de 1970 no sentido de romper com o modelo tradicional de assistência em saúde mental
(AMARANTE, 2013) – predominantemente hospitalocêntrico, de isolamento,
biologizante/medicamentoso e cronificador.
Os direcionamentos realizados pelo paradigma reformista e desinstitucionalizante
descortinam a complexidade do campo da saúde mental. Este reúne, para além das
determinações biológicas, determinações sociais, econômicas, culturais, etc. Pessoas em
sofrimento psíquico devem ser vistas na sua integralidade, para além da doença e dos
sintomas. O sofrimento não é algo reduzido ao indivíduo, mas atravessado por relações
sociais hierárquicas de classe, raça e gênero em suas articulações que sustentam a
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totalidade capitalista. Foi dessa perspectiva que analisamos as experiências de sofrimento
psíquico entre mulheres, tentando apreender a dialética entre universal, particular e singular
sob a chave da categoria totalidade como um dos pontos principais no método em Marx
(MORAES, 2021).
A pesquisa teve caráter qualitativo. A técnica de recolha de informações foi a
entrevista de história de vida, que permite captar a relação dialética entre o universal e o
singular (FERRAROTI, 1993). Foram entrevistadas dez mulheres a partir dos seguintes
critérios: ter de 18 anos para cima; ser diagnosticada com transtorno mental e realizar
tratamento em saúde mental há, pelo menos, doze meses; estar em condições de dialogar;
participação voluntária. O acesso às entrevistadas se deu num Centro de Atenção
Psicossocial II (CAPS II) num município do nordeste brasileiro. Todas pertenciam às classes
trabalhadoras. Possuíam renda familiar de até 3 salários mínimos e a maioria possuía baixa
escolaridade. Variavam quanto à cor da pele autodeclarada (a maioria, negras), à idade
(entre 28 e 56 anos), à ocupação (trabalhadoras domésticas, donas de casa, zeladoras,
faxineiras, assistentes administrativas, bordadeiras), à religiosidade (católicas, evangélicas,
espíritas, umbandistas, sem religião), ao estatuto conjugal (casadas, em união estável,
separadas, namorando, solteiras), à composição familiar (sem filhos ou com até sete filhos),
à orientação sexual (heterossexuais e homossexuais).
Cada entrevistada teve acesso e assinou o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE). O estudo foi submetido à Plataforma Brasil e aprovado sob o protocolo
de nº. 2.311.181 pelo comitê de ética da universidade da região onde foi realizado por estar
em conformidade com as exigências do Conselho Nacional de Saúde.
2 TEORIA DA REPRODUÇÃO SOCIAL: suporte analítico
Recorremos ao suporte da Teoria da Reprodução Social (TRS). Possui base
marxista e dá continuidade ao que algumas feministas marxistas como Lise Vogel (2013)
vinham sistematizando desde as décadas de 1970 e 1980: o argumento central de que a
produção de bens e serviços (de mercadorias e, portanto, de valor) no âmbito da economia
formal e a produção da vida (de pessoas) fora da economia formal constituem duas faces de
um mesmo processo. Não constituem uma dicotomia na qual uma se localiza na base
econômica e a outra na superestrutura política, mas compõem a totalidade social como
síntese de múltiplas determinações (BHATTACHARYA, 2019; MORAES, 2021; RUAS,
2021). A TRS esforça-se para direcionar a teoria social de Marx na compreensão das
relações econômicas e “extraeconômicas”. Busca entender como relações de opressão de
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gênero e de raça são produzidas de forma simultânea e imbricada à produção de mais-valia
(MORAES, 2021).
A TRS parte, portanto, de uma perspectiva unitária das relações sociais sob o
capitalismo – este é um complexo de relações de exploração, dominação, opressão e
alienação que se associam de forma integrativa, ontológica. Todas estão subordinadas à
lógica do valor (RUAS, 2021). Formam uma unidade diversa, dialética, uma totalidade que
subverte a maioria das coisas em mercadoria visando o lucro. Capitalismo, racismo e
patriarcado constituem, assim, um único sistema de dominação-exploração (ARRUZZA,
2015). O processo de acumulação primitiva do capital está organicamente relacionado com
o patriarcado e o racismo. Eventos históricos como a separação dos trabalhadores
camponeses dos meios de produção, a urbanização das cidades, a caça às bruxas na
Europa, os genocídios indígena e negro na “descoberta” do “novo mundo” e o trabalho
escravizado foram partes de um mesmo processo (ARRUZZA, 2015; FEDERICI, 2017).
Um ponto importante do processo de consolidação do capitalismo é que este
separou “lugar de produção” e “família”. Claro que isso aconteceu de modo particular nos
vários países, mas, de modo geral, com a expropriação de terras, a família patriarcal deixou
de estar relacionada diretamente com a esfera da produção e foi relegada ao âmbito
privado, passando a ser responsável pela esfera da reprodução (biológica e social)
(ARRUZZA, 2015). No interior dessa nova configuração de família, às mulheres foi relegado
o trabalho reprodutivo privado (FEDERICI, 2017). E isso até hoje é fundamental para a
reprodução do sistema como um todo. Neste, quase tudo é submetido à mercadorização,
sendo a força de trabalho a mercadoria mais importante. É a única que gera mais-valor e
produz todas as outras mercadorias. Mas aqui entra um questionamento fundamental da
TRS:
Se a força de trabalho produz valor, como a força de trabalho é, ela mesma,
produzida? Certamente os trabalhadores não brotam do chão e chegam ao mercado
frescos e prontos para vender sua força de trabalho para o capitalista [...] a chave do
sistema, nossa força de trabalho, é, na verdade, ela mesma produzida e reproduzida
fora da produção capitalista, num local baseado em laços de parentesco chamado
família (BHATTACHARYA, 2019, p. 102).
O trecho acima expressa a reprodução social como a manutenção e a reprodução da
vida em nível diário e geracional. Corresponde à forma como o trabalho necessário (físico,
emocional e mental) para produzir a população é organizado socialmente: quem gesta e dá
à luz, amamenta, prepara a comida, educa os jovens, cuida dos idosos e dos doentes,
realiza os afazeres domésticos e como são organizadas as questões de sexualidade
(ARRUZZA, 2015). A TRS amplia, portanto, a categoria trabalho dentro da tradição marxista,
pois considera tão importante quanto o trabalho produtivo, o trabalho reprodutivo:
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A força de trabalho, em grande parte, é reproduzida por três processos
interconectados: 1. Atividades que regeneram a trabalhadora fora do processo de
produção e que a permitem retornar a ele. Elas incluem, entre uma variedade de
coisas, comida, uma cama para dormir, mas também cuidados psíquicos que
mantêm uma pessoa íntegra. 2. Atividades que mantêm e regeneram não
trabalhadores que estão fora do processo de produção – isto é, os que são futuros
ou antigos trabalhadores, como crianças, adultos que estão fora do mercado de
trabalho por qualquer motivo, seja pela idade avançada, deficiência ou desemprego.
3. Reprodução dos trabalhadores frescos, ou seja, dar à luz (BHATTACHARYA,
2019, p. 103).
As atividades acima são realizadas, sobretudo por mulheres, nos lares e nas
comunidades através do trabalho doméstico não remunerado – sem qualquer cobrança para
o sistema. Mesmo que não produzam valor diretamente, são fundamentais para a
exploração de mais-valia. Mas vale destacar, adverte Arruzza (2015), que a noção de
reprodução social é mais ampla que a de trabalho doméstico gratuito porque também
engloba práticas sociais e tipos de trabalho que vão além das paredes dos lares. Uma parte
do trabalho de reprodução social vem das relações familiares, mas outra vem do mercado e
do Estado em troca de um salário. Basta pensar na esfera dos serviços privados ou públicos
em hospitais, escolas, asilos, orfanatos, no setor alimentício ou da limpeza, do trabalho
doméstico remunerado, entre outros.
Nessa perspectiva, o capitalismo é uma ordem social que mescla exploração e
opressão. Para extrair mais-valia, precisa dominar/oprimir por intermédio do gênero, da
raça, da sexualidade. É possível visualizar no cotidiano a divisão sexual, racial e
internacional do trabalho. Nela, o trabalho de reprodução tem seu valor rebaixado além de
ser ocultado como parte da base material do sistema. Isso faz parte da estratégia capitalista
de ter o mínimo de ônus. Seja através do trabalho doméstico gratuito ou do trabalho mal
remunerado, é conveniente para o capital manter a exploração/dominação/opressão sobre
as mulheres porque são elas quem majoritariamente produzem a força de trabalho a ser
explorada pelo capital. Enquanto atividade humana prática que sustenta o sistema, o
trabalho é corporificado (racializado e generificado). Mesmo que o racismo ou o patriarcado
existam como totalidades parciais, estão ontologicamente integrados com as outras partes e
o todo, que é o sistema único capitalista (MORAES, 2021; RUAS, 2021). Como aponta Ruas
(2021), o capitalismo como uma abstração não existe de fato. Apenas existe o capitalismo
racializado e patriarcal.
Depois dessa breve exposição com base na TRS, voltemos ao objeto de estudo:
experiências de mulheres com o sofrimento psíquico. Partilhamos da ideia de que a saúde
mental é amplamente atravessada por determinações variadas (biológicas, psicológicas,
sociais), apesar de o discurso com mais autoridade a respeito da matéria – a psiquiatria
hegemônica de cunho biologizante – enfatize a “química” dos processos mentais. Sob essa
perspectiva, não há (ou se há, não é considerada na sua devida importância), uma causa
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social sistêmica que esteja por trás do adoecimento. Contrariando esta tendência,
concordamos com Fisher (2020) quando o autor afirma que o capitalismo é essa causa
social sistêmica. É desse ponto que partimos para argumentar como a saúde mental de
mulheres tem sido profundamente prejudicada nesse capítulo ultraneoliberal e
ultraneconservador do capitalismo contemporâneo.
3. TRABALHO DE REPRODUÇÃO SOCIAL E SOFRIMENTO PSÍQUICO: experiências de
mulheres
O estudo teve como pergunta de partida: “como mulheres explicam o próprio
sofrimento psíquico?”. A ideia foi, com base no psiquiatra italiano Basaglia, colocar a doença
“entre parênteses” para se ocupar do sujeito e sua experiência (AMARANTE, 2013). A partir
das histórias de vida, identificamos que todas as entrevistadas, independente de
considerarem ou não doença, atribuíram uma ou mais “causas” à sua condição. Essas
concepções etiológicas englobaram acontecimentos e interações das vidas cotidiana das
mulheres. Nelas, percebemos a presença de relações hierarquizadas de gênero, classe e
raça.
3.1 Contexto familiar
O contexto da família surgiu nos relatos de entrevistadas associado com o sofrimento
psíquico. Foram descritas situações relativas ao relacionamento entre mães e filhas/os. No
geral, elas se chocaram com um “dipositivo materno” (ZANELLO, 2018), isto é, o processo
que interpela mulheres a existirem focadas no “outro”. Surgiu não apenas entre as
entrevistadas que eram mães, mas também entre as que eram filhas. Nesses casos, houve
a fragilização ou o rompimento dos laços mãe-filhas/os (pela ausência do “amor materno”,
gerada pela morte da mãe; pela morte do filho; pelas brigas constantes entre mãe-filhas/os).
Também foram relatadas situações de angústia quanto ao ato de maternar (relato sobre
pressões familiares para engravidar e cuidar de um bebê; culpa por não conseguir cuidar
dos/as filhas; “depressão pós-parto”). Foram ainda relatadas os significados negativos em
torno de ser “mãe solteira”, que, de algum modo, rompe com os “papéis” destinados às
mulheres na família burguesa e na dinâmica mais ampla da reprodução social.
Também foram relatadas relações hierárquicas familiares que colocam as mulheres
em lugares subordinados. Na relação “filha-pai” ou “irmã-irmãos do sexo masculino”, por
exemplo, são elas: as vigiadas quanto à sua sexualidade pelos homens da casa; alvos de
expectativas modestas por parte dos pais quando comparadas aos irmãos do sexo
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masculino; as que têm seus próprios sonhos e expectativas ridicularizados e/ou
infantilizados (como o sonho de ter um computador e ou de estudar).
Por fim, quanto ao contexto familiar, identificamos entre algumas entrevistadas a
sobrecarga extenuante de trabalho doméstico. Elas eram as principais responsáveis pelos
afazeres no lar (limpar, cozinhar, lavar, passar, etc) e pelo cuidado com outros familiares.
Algumas ainda precisavam conciliar este trabalho com um trabalho informal fora de casa. A
sobrecarga física gera uma sobrecarga psíquica.
Como visto, a TRS destaca a reprodução social como esfera fundamental à
sustentação do modo de produção capitalista. A capacidade biológica das mulheres das
classes trabalhadoras de gerar filhos (e, portanto, novos produtores/as diretos/as e novas
reprodutoras) tem franca relação com a esfera produtiva (VOGEL, 2013). Não é surpresa
que o sistema empreenda vários artifícios, muitos destes legitimados/desempenhados pelo
Estado, para controlar todas as frações das classes trabalhadoras de modo a continuar se
reproduzindo socialmente. Algo fundamental é a exaltação (com todos os “padecimentos no
paraíso”) do papel materno no interior da família construída conforme os preceitos
burgueses, a nuclear, que engloba o casal heterossexual e seus filhos.
O que as mulheres deste estudo – mães e esposas, sobretudo, mas também irmãs,
cunhadas e avós – realizam é trabalho reprodutivo sob baixo ou nenhum custo para o
capital. São elas que produzem a força de trabalho como a mercadoria mais valiosa do
sistema, seja limpando a casa, cozinhando, educando, oferecendo cuidados psíquicos,
cuidando de crianças ou adultos fora do mercado de trabalho, parindo e amamentando
(BHATTACHARYA, 2019). Mas tudo isso é trabalho duro, cansativo, invisível, sem
remuneração e naturalizado como amor. Por vezes é somado ao trabalho fora do lar, visto
que algumas entrevistadas são as suas principais provedoras, o que aponta para uma
jornada de trabalho dupla ou tripla. É adoecedor. As mulheres das classes trabalhadoras,
com a particularidade da raça para as mulheres negras, são as mais superexploradas numa
conjuntura neoliberal que ataca ferozmente qualquer serviço público e direitos sociais,
jogando a responsabilização do cuidado para as famílias.
3.2 A vida amorosa
O sofrimento psíquico foi atribuído por algumas entrevistadas às decepções no
contexto de relações amorosas heterossexuais. Estas são mediadas por um dispositivo
amoroso, que, segundo Zanello (2018), coloca o amor como fator identitário para as
mulheres: ser escolhida por um homem legitima o seu valor. Identificamos a noção de “amor
romântico” expressa em diversas situações: na frustração com a ideia do “felizes para
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sempre”; na ocasião de viver um “casamento arranjado”; na ideia da compulsoriedade e
perenidade do casamento, em especial para mulheres de faixas etárias mais avançadas.
Houve aquelas que sofreram com a infidelidade ou a violência praticadas por seus
companheiros. Apesar disso, algumas não romperam o relacionamento e outras
demomaram a fazê-lo. Para tal, foram identificados elementos diversos: a crença na qual o
amor envolve obstáculos que devem ser superados (no caso, a traição ou a violência); a
separação vista enquanto um fracasso social; mesmo na “falta de amor”, a conveniência em
manter relações utilitárias/fraternais com os companheiros.
De acordo com Giddens (1992), o ideal do amor romântico surgiu pelo fim do século
XVIII e ainda hoje influencia como as pessoas vivenciam suas relações amorosas. Nele, o
elemento do ardor sublime tem a tendência de se destacar mais que o elemento do ardor
sexual. Surge para ambos os sexos e torna a pessoa amada “especial” – mas é amplamente
disseminado entre as mulheres, pois elas ainda são as que mais continuam a se inserir no
mundo externo (fora da casa da família de origem) a partir do estabelecimento de ligações
amorosas. Enquanto uma construção sociohistórica, o amor romântico é uma ideologia
típica da consolidação do capitalismo e também expressa a separação entre as esferas da
produção e da reprodução. Para autoras marxistas como Kollontai (2018), ele reforça o
patriarcado, visto que impõe às mulheres os sacrifícios envolvidos para a sua manutenção.
No fundo, ele reforça a família burguesa, imprescindível para a continuidade da ordem do
capital, mas reprodutora de desigualdades.
3.3 Pobreza e seus desdobramentos
Outra “causa” de sofrimento psíquico apontada por mulheres teve relação com a
pobreza e seus diversos desdobramentos. O mais imediato é a privação material. Algumas
entrevistadas chefiavam seus lares, tendo sobre si aprofundadas a responsabilidade por
arcar com a subsistência de seus familiares. Outras entrevistadas referiram a insegurança
alimentar sempre à espreita. Outras haviam passado pela experiência de trabalho infantil
durante a sua infância e adolescência, o que impactou o seu acesso à educação e ao lazer.
A pobreza também aponta para situações de desemprego ou de trabalho
extremamente precarizado. Ademais, é atravessada por um prisma moral: algumas
mulheres relataram o mal estar com o preconceito sofrido por serem pobres, inclusive por
parte de outras mulheres em situação socioeconômica mais favorável, ainda que também
pertencentes às classes trabalhadoras. Isso sugere que vivemos numa estrutura social onde
as hierarquias de classe, raça e gênero parecem não ter fim. As feminilidades são
transversalizadas.
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Ironicamente, as mulheres são as que geralmente mais trabalham, mas também são
as mais pauperizadas. Isso porque geralmente recebem menos nos locais de trabalho na
economia formal, são as que mais preenchem os trabalhos informais e ainda desempenham
o
trabalho não pago em suas casas. As políticas capitalistas neoliberais na
contemporaneidade expressam um quadro dramático: quanto mais sofrem cortes sociais,
mais penalizadas são as mulheres. Como afirma Bhattacharya (2019), políticas voltadas
para atender interesses da maioria das mulheres são as mesmas que prejudicam os lucros
capitalistas. Não é interesse do sistema, portanto, ceder para que mulheres acessem mais
direitos, pois qualquer mudança nas relações de gênero afeta seus lucros.
3.4 Regulação do corpo feminino
Algumas situações apontadas pelas entrevistadas como fragilizadoras da saúde
mental evidenciam a regulação do corpo feminino. Em alguns relatos, essa regulação se
deu através da aparência física, inclusive gerando vivências de bullying entre mulheres
consideradas “gordas”, “magras ” ou “feias” demais. Em outros, a regulação ocorreu em
torno da sexualidade feminina. A sexualidade engloba uma espécie de script que varia
conforme questões de gênero, raça, classe. Os corpos que, por acaso, rompem com o script
podem ser “punidos”. Mulheres descreveram uma série de situações que interpretamos
enquanto rompimentos com uma vivência sexual (e a moral da família burguesa) dentro da
totalidade capitalista: iniciar a vida sexual “muito cedo” (adolescente e/ou fora de um
casamento); exercer sua sexualidade sem o estabelecimento de vínculos afetivos e/ou
apenas pelo próprio prazer; engravidar e não receber o apoio do parceiro, passando a ser
reconhecida como “mãe solteira”; estar na posição de “amante”. Algumas “punições” para
esses rompimentos: sofrer violência motivada pelo fato de não ser vista socialmente
enquanto mulher “de respeito”. Aqui, o estatuto de objeto sexual que pesa sobre qualquer
mulher acaba se agudizando sobre as mulheres negras, historicamente preteridas pelo
racismo, que tem como um de seus elementos o fetiche em torno dos corpos negros.
A reprodução social também está presente aqui. Por exemplo, ser considerada
bonita ou feia ou exercer sua sexualidade não são questões apenas de gosto ou de decisão
individual, mas determinadas pelo uso que o sistema faz dos corpos femininos.
3.5 Múltiplas violências
O sofrimento psíquico foi perspectivado por todas as entrevistadas face a diversas
violências que vivenciaram no interior de relações próximas, perpetradas por (ex) maridos,
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(ex) namorados, irmãos, cunhados, pais, irmãos, professores. Todas as tipologias
especificadas pela lei Maria da Penha (BRASIL, 2006) foram identificadas. A violência
psicológica atravessou todas as situações descritas. A violência física tinha objetivos
disciplinares sobre as posturas femininas (bater quando a entrevistada desobedecia a
autoridade masculina de alguma forma) e, nalguns casos, envolveu tentativas de
feminicídio. A violência moral envolvia xingamentos, deboches e humilhações, inclusive em
situações públicas. A violência patrimonial foi identificada em situações nas quais a mulher
tinha dificuldades de satisfazer as próprias necessidades materiais/espirituais por conta da
interferência do ex marido. A violência sexual abarcou situações como o estupro na infância
e adolescência; o estupro no namoro/casamento como expressão do “débito conjugal”, até
quando elas estavam dormindo ou sob o efeito de medicamentos psicotrópicos; diversas
situações de ameaça e culpabilização da vítima.
Para Arruzza, Bhatcharya e Fraser (2019), a violência reflete dinâmicas
contraditórias da família e da vida pessoal na sociedade capitalista. A violência contra as
mulheres surge à primeira vista a partir das suas relações pessoais, mas é igualmente
perpetrada por agentes do capital, o principal beneficiário do entrelaçamento entre
exploração de classe e opressão de gênero.
CONCLUSÃO
As experiências de mulheres com o próprio sofrimento psíquico estão alinhavadas
por um fio, o das relações sociais de gênero, raça e classe numa totalidade capitalista, tal
como explana a TRS. Cada experiência ilustra a relação dialética entre o universal e o
singular e se manifesta de maneira particular a partir da/e na sua realidade concreta. Cada
experiência aponta ainda para a presença de encontros e desencontros entre as exigências
de uma ordem social burguesa e o que acontece no plano cotidiano. Na sujeição ou na
resistência, cumprindo ou desviando dos mandatos sociais, de maneira deliberada ou não,
essas mulheres se deparam com interações e situações cotidianas que fragilizam a saúde.
Estudos que destacam o peso das determinações sociais da saúde mental podem
contribuir para: ir além das explicações biologicistas/individualizantes da saúde mental; ir
além do rótulo que é imposto às pessoas com transtornos mentais e frequentemente apaga
as suas particularidades enquanto ser social; desmistificar ideias como a da vulnerabilidade
biológica e/ou psicológica feminina como processos “naturais”; reforçar a importância de
incluir os próprios “experientes” na elaboração de seus itinerários terapêuticos; por fim,
ajudar a reconhecer que a luta por saúde mental passa pela luta contra o capitalismo e suas
múltiplas opressões. Esses elementos têm afinidade com os princípios da Reforma
Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, pois valorizam o sujeito na sua cidadania, suas
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relações sociais, a intersubjetividade, a experiência vivida com a doença, as determinações
socioeconômicas no processo de saúde-doença e a aliança com a classe trabalhadora
organizada.
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em:
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SciELO Preprints - Este documento é um preprint e sua situação atual está disponível em: https://doi.org/10.1590/SciELOPreprints.4674
VOGEL, Lise. Marxism and the oppression of women: toward a unitary theory. Chicago:
Haymarket Books, 2013.
ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de
subjetivação. Curitiba: Appris, 2018.
CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES
TM Alves – metodologia, coleta e análise de dados, concepção e escrita do manuscrito.
DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE INTERESSE
Não há conflito de interesse com o presente artigo. O artigo da autora Tahiana Alves
No capitalismo, o adoecimento dos trabalhadores é um fenômeno complexo e multifacetado, com estudos apontando para a relação entre as condições de trabalho e as enfermidades físicas e mentais. A busca constante por lucro e produtividade impõe uma série de pressões que podem ter um impacto negativo na saúde dos trabalhadores, tanto física quanto psicológica.
Adoecimento mental
A saúde mental é uma das áreas mais afetadas pelas demandas do sistema capitalista. O estresse crônico e a exaustão são problemas comuns, causados por fatores como:
Pressão por desempenho: A busca por metas e prazos gera um ritmo de trabalho exaustivo, que pode levar ao esgotamento físico e emocional.
Insegurança no emprego: O medo de perder o trabalho, especialmente em um contexto de precarização, aumenta a ansiedade e o estresse.
Desigualdade e pobreza: A disparidade econômica cria um ciclo de estresse para os trabalhadores de baixa renda, que muitas vezes precisam de mais de um emprego para cobrir as despesas básicas, como moradia e saúde.
Alienação: A falta de controle sobre o próprio trabalho e a repetição de tarefas podem levar a um sentimento de desconexão e perda de sentido.
Competição e individualismo: A cultura competitiva pode erodir a autoestima e causar ansiedade, já que o foco está em "ser o melhor", em vez de trabalhar em equipe.
Adoecimento físico
Além dos impactos na saúde mental, as condições de trabalho precárias e o estresse excessivo também resultam em problemas de saúde física.
Condições de trabalho perigosas: A precarização do emprego pode levar à exposição a ambientes e tarefas com riscos físicos e químicos, com pouca ou nenhuma segurança.
Excesso de trabalho e sobrecarga: Jornadas de trabalho longas e a necessidade de realizar múltiplas tarefas aumentam a propensão a doenças cardiovasculares, problemas musculares e outras enfermidades relacionadas ao estresse.
Falta de controle: Trabalhadores com baixa autonomia sobre suas tarefas e que enfrentam altas demandas têm maior probabilidade de desenvolver estresse e problemas físicos associados.
Privação material: Salários baixos resultam em piores condições de vida, como moradias inadequadas e má alimentação, que impactam diretamente a saúde.
O sistema capitalista transforma o próprio adoecimento em fonte de lucro. Primeiro, o sistema explora a força de trabalho até que o trabalhador adoeça; em seguida, ele lucra com a doença por meio da indústria de saúde e medicamentos. Além disso, muitas vezes a responsabilidade pela saúde é individualizada, ignorando o contexto socioeconômico e as condições de trabalho que levam ao problema.
Confira o Texto da Constituição Federal do Brasil no Senado Federal .https://normas.leg.br/?urn=
Ainda bem que temos uma Constituição que garante os nossos direitos em um sistema capitalista
Confira a reportagem no UOL .https://economia.uol.com.br/
E assim caminha a humanidade.
Imagem ; Site Brasil Escola. Portal UOL.
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