A ineficiência do Estado perante a barbárie
Maria Rita Kehl
Paulo Fernando Pereira de Souza
ESPECIAL PARA A FOLHA
RESUMO Apesar de a dor oriunda da violência independer de classe, a percepção de
crimes e empatia para com vítimas reproduz padrões de desigualdade social. Ao
privilegiar o aspecto punitivo para responder ao clamor público, como na proposta de
reduzir a maioridade penal, o Estado erra e desconsidera sua função reguladora.
"Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira." A
conhecida abertura de "Anna Karenina" já se integrou ao senso comum entre os leitores
de romances. A felicidade é um clichê; só a infelicidade é singular.
Nem sempre. Nas guerras, nas ditaduras, nas crises de desemprego, a experiência da dor
também segue um padrão previsível. É o caso dos pais do adolescente assassinado
depois de entregar seu celular ao assaltante; dos familiares da dentista queimada viva
porque tinha pouco dinheiro no banco; dos pais do jovem atropelado e morto pelo
motorista alcoolizado na Vila Madalena; dos que perderam seus filhos no incêndio da
boate Kiss; dos órfãos de mulheres assassinadas por maridos ciumentos.
Pensamos nas mães das periferias e favelas brasileiras: mães solitárias que insistem em
ter notícias de seus filhos desaparecidos, mães de meninos anônimos mortos por
traficantes ou por policiais, impunes. A infelicidade dessas pessoas tem muitos
elementos em comum: desamparo, lutos irreparáveis, medo de sofrer retaliações, revolta
e sentimento de injustiça - este, inconsolável.
Suas lembranças, seus corpos precocemente envelhecidos compartilham para sempre o
conhecimento silenciado de que somos mortais, desprotegidos, frágeis e impotentes.
Mesmo em tempos de paz permanecerá neles, latente, a possibilidade de eclosão do
medo do imprevisível.
Mas o impacto da violência social vai muito além da dor individual dos familiares. Seus
efeitos podem ser devastadores por gerações. Reconhecimento público e solidariedade
coletiva são indispensáveis para cicatrizar as feridas Já o desinteresse da sociedade
pelos crimes que vitimaram seus entes amados agrava os sentimentos de injustiça e
desamparo.
A repercussão midiática dos assassinatos reproduz a escandalosa desigualdade social
brasileira.
Na mesma semana em que o leitor acompanha, solidário, as notícias das famílias
enlutadas das vítimas de violência no Morumbi ou no Belém, ele também terá passado
os olhos por uma série de notas lacônicas sobre "cinco (três/ sete) jovens (sem nome,
idade ou parentes capazes de reivindicar justiça) mortos a tiros por homens
encapuzados... no Jardim Ângela/ no Capão Redondo/ na periferia de Guarulhos...
Crimes idênticos em bairros semelhantes: bairros em que os familiares dos jovens
assassinados temem dar queixa na delegacia e não conseguem fazer sua dor sair no
jornal. Sua indignação, quando chega ao noticiário, é exposta de forma cruel nos
espaços restritos aos programas "policiais" sanguinolentos --talvez por isso mesmo,
produza distanciamento e suspeição. Sua tristeza pouco compartilhada e suas
reivindicações seguem caminhos discretos, silenciosos. Mas não menos dolorosos.
As vítimas da violência brutal na periferia, mães, pais e irmãos pobres, na maioria
negros, não contam com a identificação amorosa dos leitores e telespectadores.
O honesto leitor desta Folha, pacato espectador do "Jornal Nacional" está informado de
que, em maio de 2006, em retaliação aos crimes do PCC, 493 pessoas (algumas sem
antecedentes criminais) foram assassinadas pela polícia de São Paulo, e os corpos de
muitos delas continuam desaparecidos?
Sabe que seus familiares são ameaçados quando tentam localizar os corpos? Estão
informados de que, só no ano de 2008, o número de homicídios cometidos por policiais
em confrontos no Estado de São Paulo --397, segundo a ONG Human Rights Watch-- é
superior ao total de assassinatos cometidos por policiais na África do Sul?
Do lado mais protegido da barreira social, familiares de vítimas pagam um alto preço
pela exploração mórbida de suas tragédias.
Imagens como as do tênis no chão queimado da boate, manchas de sangue no capô
amassado de um carrão, o sofá incendiado, o vídeo que flagra o tiro gratuito contra a
vítima já rendida, as expressões dos familiares em momentos de extremo sofrimento são
exibidos sem pudor. Tal exposição desconsidera os sentimentos das vítimas e revela
uma morbidez coletiva pela qual ninguém se responsabiliza.
O sentimento de injustiça, a certeza de que tais aberrações não deveriam acontecer e a
indignação com nossa falta crônica de políticas de segurança pública geram, nos bairros
em que os moradores não correm (muitos) riscos de retaliação por parte dos assassinos,
mobilizações reivindicatórias e debates que ajudam a superar a sensação de impotência
e desamparo.
A luta contra a impunidade é um traço comum aos movimentos nascidos da dor,
capazes de abalar nosso cotidiano individualista e indiferente, como se estivéssemos
imunes às tragédias e nada tivéssemos a ver com elas.
Questionar a desvalorização da vida, a atitude no trânsito, o porte de armas, o
machismo, o descaso com segurança nos eventos, a insegurança pública e a justeza das
punições são atos que alimentam o debate da nossa pobre cidadania. Por serem públicas
é que essas questões polêmicas deveriam tocar a todos, sobretudo ao Estado.
Esperar que o Estado cumpra sua função reguladora é um fator indispensável à vida
social. As responsabilidades são diferentes para os agentes públicos e particulares; para
pais coniventes, omissos ou derrotados; para quem deveria cuidar, para quem sofre e
para quem causa sofrimento.
Ainda assim, cabe ao Estado, por meio das chamadas políticas de segurança pública -
que não se reduzem a medidas punitivas-- proporcionar as condições mínimas para a
paz social. É possível supor uma relação entre a violência arbitrária e impune praticada
por agentes do Estado e sua propagação no resto da sociedade.
DESPROPORÇÃO
Parte da questão do rebaixamento da maioridade penal se insere na percebida
desproporção entre a gravidade dos delitos cometidos e as conseqüências:
particularmente quanto ao tempo de privação de liberdade. Mas tal desproporção
também se observa na branda punição aos assassinos de trânsito; aos delinqüentes de
colarinho branco, aos omissos na segurança de eventos, às torcidas organizadas e aos
maridos ciumentos que matam cruel e friamente suas mulheres.
Observemos que alterar uma definição legal de maioridade desloca o problema.
Definições de maioridade penal são legais e arbitrárias, já que pessoas de 11 anos e 11
meses pouco diferem das de 12 anos; o mesmo vale para as de 17 anos e 11 meses em
relação às de 18: sempre teremos imprecisões na transição da Justiça da Infância e
Juventude para a Justiça Penal.
Aliás: na prática, os dois sistemas se revelam falhos e corruptores. Não há real
preocupação educativa nas privações à liberdade de adolescentes: existe somente uma
comparação na qual o sistema prisional é a referência da pior solução possível até o
momento. No caso dos menores infratores, como é possível chamar de impunidade o
reconhecido inferno proporcionado por três anos na Fundação Casa?
O apelo à punição como uma proteção à sociedade é uma esperança que não se cumpre.
A indústria do medo e da insegurança, batizada ironicamente de indústria de segurança
e proteção, garante seus lucros; ecoa e alimenta o sentimento persecutório que torna
cada cidadão uma vítima em potencial; constrói nossos inimigos, ao mesmo tempo em
que diz nos proteger deles. Endurecer nessa direção é fazer mais do mesmo, é agir com
o conformismo indignado que corresponde à nossa impotência diante da desigualdade e
da violência que castigam o Brasil.
O encarceramento em proporções cada vez maiores é uma política de Estado raramente
contestada, mas que, aqui e em todo o mundo, alimenta efeitos danosos de preconceito
social, de gênero e racial. Além de fomentar a violência que pretende combater, uma
vez que não reconhecemos como pertencendo ao mesmo mundo que nós os negros (ou
os análogos migrantes), os pobres, os moradores de periferia. Estes que o aparato
prisional integra fora das fronteiras da sociedade de consumo como dejetos.
Vamos calcular com seriedade: o que acontecerá com o criminoso de 16 anos solto
depois de cumprir a pena máxima numa cadeia comum? Aos 46, será um perigo ainda
maior para a sociedade que julgou ter se livrado dele.
Não ocorreu ao governador Geraldo Alckmin, atônito diante do recente surto de
barbárie paulista, bradar por uma reformulação radical do sistema sócio-educativo que
ele governa.
Ocorreu a proposta demagógica de reformular a lei que determina a maioridade penal
aos 18, descartando assim a responsabilidade do governo de educar aqueles jovens. Ao
fazê-lo, ignorou a norma, ditada pelo bom senso, que faz com que os adultos se
considerem responsáveis pelo destino de todas as crianças, sem exceção.
A reivindicação pela pena adequada é importante, mas não a principal. No campo da
juventude devemos evitar o risco de que, identificados com algumas vítimas, sejamos
indiferentes a outras.
Um adolescente assassinado é uma tragédia, seja ele branco ou negro, de classe média
ou de periferia, rico ou pobre, quer tenha sido assassinado por um ladrão drogado que
quer seu celular ou por um policial numa rua escura.
Um jovem que cometeu assassinato também é uma tragédia, quer tenha ele 17 anos, 11
meses e 29 dias, quer tenha ele 22 anos, quer assalte, atropele ou ataque o torcedor do
time adversário. Para que um jovem ceife a vida de outro banalmente, para que jovens
queimem índios, massacrem colegas de escola, espanquem empregadas, assassinem
com jet-skis ou com carrões, todos falhamos como educadores e protetores.
Como criaremos nossos adolescentes numa sociedade com lei é uma pergunta que
devemos fazer a cada um de nós. Cobrar maior eficiência e rigor do Estado no
enfrentamento das transgressões e delitos menores, maior equidade na distribuição da
justiça parece ser mais eficiente na prevenção de novas tragédias violentas e no combate
a impunidade que alterar a maioridade penal. Precisamos evitar promover a barbárie
com a boa intenção de combatê-la. O artigo dos autores Maria Rita Kehl e Paulo Fernando Pereira de Souza
O estado, ao negligenciar políticas sociais, investir mais em repressão do que em prevenção e não garantir a presença do Estado na periferia através de emprego e renda, contribui para a barbárie, especialmente ao criar um ambiente propício para a atuação de organizações criminosas e à violência policial. A falta de estrutura policial, a ausência de preservação de locais de crime e uma legislação desatualizada perante a Constituição de 1988 também reforçam essa situação, tornando o Estado corresponsável pela barbárie.
Como o Estado contribui para a barbárie
A falta de investimento em geração de emprego e renda é um dos fatores que permite o recrutamento de jovens desempregados por facções criminosas, especialmente nas periferias.
A prioridade em investir em repressão em vez de políticas de prevenção e investigação agrava a situação, desvalorizando a perícia e baseando-se em testemunhos que podem ser menos confiáveis.
A falta de pessoal qualificado e a má remuneração dos policiais dificultam e impedem a investigação eficaz de crimes.
A falta de preservação adequada dos locais onde crimes ocorrem pode levar à perda de provas importantes, prejudicando a investigação.
O uso de leis infraconstitucionais que são anteriores à Constituição de 1988 cria um ambiente de insegurança jurídica e dificulta a implementação de um Estado democrático de Direito.
A situação atual sobrecarrega os policiais na rua, que acabam tendo que interpretar a legalidade das ações, colocando-os em situações de risco e criando brechas para a atuação de criminosos.
A existência e a atuação de organizações criminosas são de conhecimento público, mas a falta de ação efetiva do Estado permite que esse poder paralelo se consolide, o que gera um cenário de ineficiência policial e barbárie.
Empresas e governos devem mudar as suas atitudes, repensando o modo de produção e consumo, e adotando políticas que priorizem a sustentabilidade.
Investir em tecnologias como a energia solar e incentivar a compra de materiais que podem ser reaproveitados são exemplos de práticas que contribuem para a sustentabilidade.
A sustentabilidade engloba três pilares: o ambiental (preservação do planeta), o social (justiça e bem-estar) e o econômico (viabilidade financeira e competitividade sem degradação). Segundo especialistas nos veículos de imprensa no Brasil.
Confira a noticia no Portal G1 da Rede Globo. https://g1.globo.com/sp/sao-
E assim caminha a humanidade.
Imagem ; Blog do Boitempo
Nenhum comentário:
Postar um comentário