Revista Percurso: Sociedade, Natureza e Cultura. Ano VIII, No. 10, 2009,
Vol. 02, pp. 79-96
Da guerra à gestão: a trajetória do Primeiro Comando da
Capital (PCC) nas prisões de São Paulo
Camila Caldeira Nunes Dias1
Resumo:
Nas últimas décadas, as prisões paulistas assistem a expansão de uma
organização de presos (PCC) que se constitui como instância reguladora dos
conflitos, fonte de elaboração das normas de convívio, bem como das punições
aos seus transgressores e cujo domínio está baseado num discurso de união e
solidariedade e também no exercício da violência física. O objetivo do texto é
discutir as transformações no exercício do poder pelo PCC. Identificamos três
momentos distintos que indicam três diferentes formas de utilização da
violência pela organização criminosa.
Palavras-chave: prisão; PCC; violência; poder.
From war to management: the PCC’s course in the São Paulo’s prisons
Abstract
In the last decades, prisons in São Paulo state have witnessed the expansion of
an inmates organization (the “PCC”) which consists itself of an authority that
regulates conflicts and is a source of rules on living together standards as well
as on punishments to its transgressors, and whose dominion is based on an
alliance and solidarity speech and also on the use of physical violence. The
purpose of the text is to discuss the changes in PCC’s power exercise. We
identify three different moments that indicate three different ways to make use
of violence by the criminal organization.
Keywords: prison, PCC; violence; power.
1Doutoranda em Sociologia pela USP, pesquisadora do Centro de Estudos em Segurança
Pública e Direitos Humanos (CESPDH) da UFPR.
Introdução:
Nas duas últimas décadas assistimos a um agravamento das condições
físicas das prisões que decorre, em grande medida, do aumento vertiginoso da
população carcerária sem a correspondente melhora na infra-estrutura e na
formação dos funcionários, cujo número também não acompanha o ritmo
frenético de crescimento dos presos. Neste cenário, a corrupção e o arbítrio
tornam-se a tônica dominante no relacionamento entre funcionários e presos e
a violência se constitui como base deste sistema social. Na esteira deste
processo de agravamento das condições materiais e morais das prisões, vimos
a emergência – em São Paulo, onde estes processos ocorreram de forma mais
contundente - de uma organização de presos, o Primeiro Comando da Capital
(PCC) que, ao longo deste período alcançou uma capacidade de estruturação
e de articulação jamais vista antes.
Estendendo seu domínio por quase todo sistema carcerário, o PCC
passou a controlar as atividades ilícitas realizadas dentro e fora da prisão. Além
disso, a organização se apresenta como provedora de bens e serviços básicos
para alguns presos e suas famílias. Simultaneamente, o PCC se impôs como
instância reguladora e mediadora das relações sociais na prisão, exercendo o
papel de árbitro e determinando as decisões nas mais diversas formas de
conflitos sociais, além de participar direta ou indiretamente da gestão das
unidades prisionais, escolhendo presos para ocupar os poucos postos de
trabalhos existentes ou intercedendo junto aos diretores nos casos de abuso de
poder por parte dos funcionários.
Dividimos o processo de expansão e consolidação do PCC no sistema
carcerário paulista em três momentos, de acordo com o padrão de ações
violentas, considerado a partir da ocorrência de rebeliões, motins, resgates e
assassinatos de presos, não apenas em termos quantitativos, mas, também, a
partir da forma assumida por estes eventos.
• 1993 a 2001: a constituição e expansão do PCC
1
O processo de expansão do PCC no interior do sistema carcerário tem
início no ano de 19942, mas sua influência começa a ser percebida a partir de
1995. O aumento vertiginoso das rebeliões – que se repetia ano após ano,
culminando com a megarrebelião de 2001 – com a exponencial ampliação do
tempo de duração das mesmas e reivindicações que iam além das queixas
pontuais, adquirindo caráter estrutural3, sinalizava que alterações profundas
estavam em curso. Além das rebeliões, o aumento das ações de resgate de
presos – que demandam organização e posse de pesado armamento –, do
número de assassinatos no interior das prisões e de fugas espetaculares
evidenciavam não só a capacidade de planejamento da facção, mas também
seu potencial corruptor, possibilitado pelos lucros auferidos do tráfico de drogas
e de outros crimes empreendidos por membros da organização, como
seqüestros e roubo a bancos. O crescimento significativo destes eventos
indicava que o sistema carcerário estava passando por um processo de
reconfiguração das relações de poder.
Apesar dessas evidências de que algo novo estava acontecendo, o
Estado não admitia a existência da organização de presos que começara
aparecer timidamente no noticiário jornalístico a partir de 1997, mas que só
teve sua existência reconhecida oficialmente pelo governo após a
megarrebelião de fevereiro de 2001 – ou seja, quando já era suficientemente
estruturada para organizar uma rebelião simultânea em 29 unidades
prisionais4.
• 2001 a 2006: consolidação de uma nova configuração do
poder
O evento ocorrido em 2001, que expôs publicamente a existência da
facção, teve dois efeitos imediatos: de um lado, desencadeou a resposta
2A criação do PCC ocorre em agosto de 1993.
3Entre as reivindicações de caráter estrutural destacamos a desativação do Anexo da Casa de
Custódia de Taubaté, prisão localizada na região do Vale do Paraíba, conhecida pelos maus
tratos aos presos e, não por acaso, o berço do PCC.
4Neste evento, a televisão mostrou faixas estendidas em diversas unidades prisionais com o
nome da organização e o seu lema “paz, justiça e liberdade”. Não havia, pois, como negar sua
existência, tampouco seu protagonismo na desmoralização do governo estadual paulista.
Importante lembrar que em junho do mesmo ano ocorreria a maior rebelião do estado do
Paraná e uma das mais longas do país, na Penitenciária Central do Estado – PCE – que durou
6 dias, foi liderada por 3 fundadores do PCC – Cesinha, Geléião e Misael – e mais 23 membros
da facção e na qual foram mortos um agente penitenciário e três presos.
2
repressiva do Estado com a criação do RDD5; por outro lado, a megarrebelião
conferiu prestígio e respeito aos membros do PCC, fortalecendo e
impulsionando a sua disseminação de forma mais rápida no sistema carcerário.
A consolidação do poder da facção foi publicamente demonstrada na segunda
crise mais aguda do sistema, ocorrida em maio de 2006, quando 74 unidades
prisionais se rebelaram simultaneamente, além das centenas de ataques às
forças de segurança ocorridas no lado de fora das cadeias.
Como afirma Balandier (1982, p. 7), para garantir a manutenção do
poder é fundamental a produção de imagens e a transposição das condições
do exercício da dominação e das posições ocupadas pelos dominadores ao
nível do simbólico, organizando esses símbolos num quadro cerimonial. A
fundação do PCC, os rituais de batismo e as formas de execução de inimigos e
traidores foram por muito tempo carregados de elementos simbólicos,
essenciais no processo de consolidação do poder da facção e de justificação
da violência por ela exercida. Neste sentido, um duplo homicídio ocorrido em
agosto de 1993 é considerado o marco simbólico da criação do PCC,
transformado em narrativa mítica, reatualizado no batismo dos novos membros
da organização e nas muitas execuções de rivais, repletas de elementos
simbólicos.
Para Balandier (1982, p. 7) “ [...] o passado coletivo, elaborado em uma
tradição, em costume, é a origem da legitimação. [...] permite empregar uma
história idealizada, construída e reconstruída segundo as necessidades, a
serviço do poder presente”. Assim, a imagem de uma irmandade, constituída a
partir de uma experiência comum de privação, sofrimento, opressão e injustiça
entre os irmãos, é reativada pelo ritual de batismo, através da leitura do
estatuto que relembra fatos marcantes na história dos abusos cometidos pelas
autoridades no sistema penitenciário paulista, como o Massacre do Carandiru6
e a tortura constante no Anexo da Casa de Custódia de Taubaté.
5O Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) consiste num regime de cumprimento da pena de
prisão muito mais rigoroso, onde o preso fica em celas individuais, com 1 hora de banho de sol
por dia, além de várias restrições como a proibição de visitas íntimas. No Paraná esse sistema
é denominado RATEP – Regime de Adequação ao Tratamento Penal.
6O Massacre do Carandiru ocorreu em agosto de 1992, numa invasão da polícia militar à Casa
de Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru, que resultou na execução de 111
presos.
3
As execuções de rivais ou de membros dos grupos acusados de
transgredir as regras da organização pode se realizar de diversas formas,
dependendo do contexto no qual a execução ocorre. Em alguns casos, é
fundamental esperar a oportunidade propícia para cometer o assassinato e
este deve ser efetivado rapidamente, de forma a evitar o flagrante. Nestes
casos, a necessidade de praticidade e rapidez no ato da execução elimina o
elemento simbólico. Sempre que a ocasião favorece, porém, as execuções
comandadas pelo PCC contêm símbolos que marcam e reforçam o poder da
facção criminosa. As rebeliões são as ocasiões mais favoráveis a esta
demonstração de poder através dos suplícios sobre o corpo dos condenados. A
decapitação é (ou era) uma das marcas do PCC nas execuções dos membros
de outras organizações.
O maior prejuízo trazido pela transgressão é a desordem ao corpo
social, isto é, a possibilidade de generalização da infração ao código normativo.
Tanto mais grave a transgressão quanto maior é a possibilidade de que a
mesma se dissemine pelo grupo. Desta forma, se o perigo é a desordem social,
a função da execução é impedir a propagação desta desordem. Obviamente, a
reconciliação entre transgressor e corpo social – ou seja, a facção PCC – não é
o objetivo do ritual de execução. A idéia de correção do infrator é ausente neste
mecanismo de poder que visa o futuro – impedir novas transgressões - e não o
passado – o transgressor é eliminado e completamente destruído (GIRARD,
1998). A cerimônia aterrorizante faz do corpo destruído do rival ou do traidor
um exemplo emblemático da ameaça terrível que paira sob aqueles que
presenciam a execução, desestimulando, a partir da imposição do medo, a
repetição do mesmo erro. A importância do caráter público do ritual de
execução advém da sua função exemplar e preventiva (FOUCAULT, 2000,
especialmente capítulos 1 e 2).
Além disso, o ritual de execução de um condenado pelo PCC possui a
função política de reparar a soberania lesada, na medida em que faz o poder
do líder brilhar por sob aquele que, transgredindo as normas impostas,
desafiou essa autoridade. Não responder à provocação é desonroso e
desmoraliza o líder da organização e, desta forma, ameaça a sua posição
social. Assim, a execução é também um ato de vingança do líder que, ao
4
destruir o infrator, reconstrói a sua soberania e reafirma seu poder
(FOUCAULT, 2000).
Tendo o Yin e Yang – símbolo oriental que remete à idéia de energias
opostas e complementares – na sua bandeira, além do lema “paz, justiça e
liberdade”, o PCC coloca em prática todo um repertório de imagens que
sustentam o exercício do seu poder, ao remeter ao universo simbólico da luta
dos oprimidos contra os opressores, da identificação de todos os presos numa
narrativa social marcada pela injustiça, pela violência e pela miséria, e cuja
possibilidade de superação é dada justamente pela união de todos em torno da
organização. Em nome deste ideal, construído simbolicamente, toda ação é
passível de ser justificada, inclusive a violência.
• A partir de 2006: a gestão da população carcerária pelo PCC
Desde meados de 2006, temos assistido a uma relativa calmaria nas
prisões paulistas, considerando-se não só a redução drástica do número de
rebeliões, como também a queda expressiva do número de homicídios no seu
interior. O exercício do poder efetivado a partir de um aparato simbólico, válido
durante o processo de expansão da facção e de consolidação de seu domínio
no sistema carcerário, adquiriu um aspecto mais racional, como indicam os
elementos que serão apresentados a seguir, e que sugerem uma nova
configuração do poder.
a-) Instituição de um corpo funcional e elaboração do código normativo:
Um elemento importante que apareceu logo no início da expansão do
PCC é a institucionalização do código normativo, com a elaboração do
estatuto7 da facção e uma diferenciação funcional no interior da organização
com um quadro de “funcionários” cuja função é impor e zelar pelo cumprimento
das regras, assim como de promover o julgamento e a punição. Embora o
estatuto e a diferenciação funcional sejam simultâneos à criação do PCC, eles
têm sofrido mudanças importantes.
O processo de diferenciação funcional ocorrida no interior da
organização está diretamente ligado ao crescimento da facção dentro e fora
7O estatuto do PCC foi escrito logo após sua fundação, em 1993, por um de seus fundadores,
o preso de nome Misael (assassinado em 2002 a mando da própria facção) e continha 16 itens.
Hoje, de acordo com alguns entrevistados, há uma cartilha do PCC, uma espécie de caderno,
com todas as regras que foram acrescentadas ao longo dos anos.
5
das unidades prisionais e à diversificação de suas áreas de atuação. Dentro
das unidades prisionais, para os determos apenas nestes lócus de dominação
do PCC, há a posição de “disciplina” que seria o responsável pela manutenção
da ordem em determinado setor. Cada setor da unidade prisional – cozinha,
oficina, faxina, esportes – e cada raio dos pavilhões possuem um “disciplina”, o
qual, como bem expressa o seu cargo, é o responsável pelo controle e
manutenção da ordem no local. Além do “disciplina”, há o responsável pela
cobrança das dívidas – em geral, de drogas – que faz o papel de intermediação
entre o traficante e o usuário em débito, a fim de evitar que a cobrança da
dívida se transforme num conflito mais sério, resultando em morte8, como era
muito comum num passado próximo. Há, ainda, os “sintonias”, os quais são os
responsáveis pela circulação das informações nas cadeias – quem está
chegando na unidade, quem está saindo, se algo está saindo da rotina – bem
como pela transmissão dos “salves”do Partido9, isto é, as ordens e decisões
emitidas pelas instâncias de poder superiores da facção10. Há, ainda
responsáveis pelos raios das unidades prisionais e, por fim, o posto mais alto
da hierarquia local da facção é o “Piloto Geral”. Além destes cargos, os
irmãos11 do PCC são distribuídos de forma que em cada cela permaneça um
8Os entrevistados disseram haver dois cadernos para anotação dos devedores. Um deles era
amarelo, e representava um sinal de alerta para que o indivíduo procurasse pagar suas
dívidas, num prazo médio de 10 dias. Se a dívida não fosse paga, o mesmo se tornava
“inadimplente” e seu nome seria registrado num caderno vermelho, sendo proibido de comprar
qualquer coisa dentro da prisão. Uma lista dos nomes dos inadimplentes era colocada em
vários setores da unidade para que fosse do conhecimento de todos, quem são os presos
nesta condição. Insisti, muitas vezes, na questão acerca da punição para o indivíduo nesta
situação e, embora não se admita abertamente, fica claro que o indivíduo que está com seu
nome “sujo” se encontra numa situação-limite.
9Partido ou Comando são as outras formas pelas quais o PCC é chamado.
10 O setor de “sintonia”, tal como é chamado o grupo de presos que desempenham este papel
é, em geral, formado pelos detentos que exercem a função de faxina ou boieiro. Formalmente,
os “faxinas” são os responsáveis pela limpeza no interior da unidade prisional e os “boieiros”
são os responsáveis pela entrega da bóia, isto é, da alimentação, aos presos. Além dessas
funções formais, porém, esses presos desempenham importantes papéis na rede de poder
estabelecida na prisão, na medida em que ocupam uma posição privilegiada que lhes permite
maior liberdade de circulação e mais tempo livre, fora das celas. Por se tratar de postos
estratégicos é que o PCC designa os nomes para ocupá-los uma vez que, mais importante do
que as atividades formais que esse indivíduo vai desempenhar, são as atividades
informais/ilegais ligadas à organização.
11 “Irmão” designa os membros da facção. Importante salientar que para se tornar um “irmão” é
necessário ser convidado por alguém que já integra a organização – que será o padrinho – e
ser batizado, o que se dá através da leitura do estatuto e um juramento de fidelidade à facção.
Os outros presos que não passaram por este processo são chamados de “companheiros”.
6
deles, no mínimo, que, em geral é o responsável pela manutenção da ordem
no local12, o que expressa a capilaridade do poder.
Ao estatuto, várias regras de conduta são freqüentemente acrescidas,
num mecanismo próprio de sustentação do poder. Destacaremos algumas
regras que não fazem parte do estatuto do PCC, mas que estão em vigência
atualmente: - a proibição de consumo de crack dentro das cadeias, que ocorreu no
ano de 2002, aproximadamente, em decorrência do potencial altamente
destrutivo da referida droga que gerava inúmeros transtornos e conflitos dentro
da prisão que, somado ao seu preço baixo, fazia com que este comércio desse
mais prejuízo do que lucro para a organização. - a responsabilização dos padrinhos pela atitude de seus afilhados em
virtude do crescimento rápido da facção com novos membros sendo batizados
numa velocidade muito alta e que gerou transtornos advindos da imaturidade
de muitos destes novos “irmãos”. Neste sentido, a extensão da punição aos
padrinhos, cujos afilhados infrinjam as regras da organização, visa disciplinar e
regulamentar a entrada de novos membros para que estes “não denigram a
imagem da organização”. Claro está que a cúpula do PCC visa, com este
procedimento, estabelecer um determinado perfil para seus membros – de
pessoas com maior preparo para lidar com conflitos e gerenciar a população
carcerária - que, dentre outras razões, tem o objetivo de legitimar a existência e
o domínio por ela exercido. - gradação nas punições aos irmãos: se antes a execução do traidor ou
infrator do código era, se não a única, a principal punição imposta pela
organização aos seus membros, o desenvolvimento da facção resultou numa
diferenciação das punições aos infratores do código normativo, cuja severidade
depende da gravidade da infração. Assim, o irmão que incorrer em erros pode
ser excluído permanentemente da organização ou pode ser suspenso por um
período determinado de tempo. Esse período depende da infração cometida e
pode variar de 90 dias até dois anos de suspensão. Pode ocorrer que, dentre
os irmãos excluídos, alguns sejam executados; isso depende do que ocorreu e
12 Embora essa seja a regra, há exceções que dependem muito do status do irmão e do status
dos outros ocupantes da cela. Um dos entrevistados, por exemplo, muito respeitado entre a
população carcerária afirmou que na cela dele o irmão lá presente não mandava em nada.
7
também do status do ex-membro e, também, de ele representar ou não uma
ameaça ao PCC. Em relação ao período de suspensão, em termos práticos,
isso significa não poder batizar novos integrantes, ser proibido de comercializar – em especial, drogas - e também, perder seu status social diante da
população carcerária. - a proibição do porte de facas: essa, certamente, é mudança que
melhor expressa o atual contexto do sistema carcerário paulista. As facas,
serras, estiletes, sempre foram objetos centrais nas cadeias brasileiras e estão
diretamente associados com a insegurança da vivência prisional e constituem
se em meios de auto-proteção. A faca era objeto central nas execuções do
PCC, caracterizadas pela decapitação da vítima. Porém, há alguns anos, este
objeto foi proibido pelo PCC, de acordo com informações de presos e de
funcionários do sistema. Com exceção das ocasiões em que rebeliões são
planejadas, o porte de faca em unidades prisionais do PCC acarreta severas
punições ao indivíduo que for pego em tal infração. Ao questionar todos os
presos com os quais conversei acerca dos motivos desta proibição, a resposta
foi sempre a mesma: se todos são membros ou companheiros do PCC e,
ainda, há uma ordem de manutenção da “paz” nas prisões – ou seja, brigas e
mortes motivadas por desavenças pessoais e acerto de contas não estão
sendo permitidas – sendo que quaisquer problemas adquiridos pelos indivíduos
devem ser reportados à “autoridade” local, isto é, ao “Piloto”, que definirá as
providências a serem tomadas. Assim, não há motivos para que alguém porte
faca ou outro objeto de auto-proteção. O preso que for flagrado em tal
transgressão será suspeito de tramar alguma coisa contra o PCC – de ser,
portanto, um inimigo, pertencente a outra facção – ou de planejar desobedecer
a ordem de manter a paz e de não respeitar a autoridade do líder local para
solucionar conflitos interpessoais. Nos dois casos, trata-se de infração grave e
acarretará punição.
b-) Mudança na forma de matar:
Em consonância com a regra destacada anteriormente, desde 2006 o
PCC não executa mais seus inimigos dentro das prisões a golpes de facas ou
estiletes. Utiliza, ao invés, mecanismos mais sutis e menos visíveis de
execução, como o enforcamento – para simular suicídio – ou, como tem
8
ocorrido mais recentemente, o “gatorade”13. A simulação do suicídio ou da
morte por overdose elimina o problema histórico no sistema prisional da autoria
do crime que, via de regra, era assumido por laranjas14. Trata-se, portanto, de
uma forma racional de execução – que não é publicizada espetacularmente,
como ocorrera outrora com a decapitação, mas é eficiente conquanto satisfaz a
necessidade da punição e, ao mesmo tempo, dificulta a associação explícita
com o homicídio.
c-) Os tribunais e os debates: a democratização da organização?
Uma nova configuração organizacional parece ter ocorrido no PCC após
a ascensão de Marcola ao topo da hierarquia da facção; se antes o modelo de
distribuição do poder era de tipo piramidal, hoje prevalece o modelo celular, no
qual, apesar de haver uma hierarquia de fato, com uma cúpula no centro, há
vários níveis intermediários, que dividem o poder de acordo com a região em
que se encontram e prestam contas apenas à cúpula. Esta mudança
organizacional tem o objetivo de dificultar as investigações acerca das
atividades e dos recursos da facção, pulverizando as fontes e os responsáveis
pela arrecadação e pelo controle do que é arrecadado.
Porém, essa mudança organizacional veio acompanhada de um
discurso de democratização da facção, que teria sido promovido pela nova
cúpula, que, diferentemente da precedente (Geléião e Cesinha) tem um perfil
“democrático” e propõe uma “ideologia social” para a organização, recusando a
centralização do poder e instituindo um processo decisório onde todos – irmãos
e companheiros – podem participar. Assim, de acordo com esse discurso, toda
e qualquer questão – seja a instituição de uma nova regra, seja a execução ou
a expulsão de alguém – é “debatida” entre todos e só após esse debate é que
a decisão é tomada. Em consonância com esse discurso, as denominações
“piloto” ou “líder” não são mais utilizadas uma vez que há a negação de que
haja qualquer espécie de privilégio aos irmãos em relação aos companheiros e
às “lideranças”15. Os membros do PCC se referem aos “líderes” como pessoas
13 Gatorade consiste em obrigar o sujeito a ingerir um quantidade alta de drogas, geralmente
cocaína, misturada com água que resulta em morte por parada cardíaca.
14 Laranja ou lagarto é o nome que se dá ao preso que assume crimes ou faltas disciplinares
cometidas por outros presos, geralmente como forma de pagamento de dívidas.
15Todo esse discurso, cujos aspectos gerais apresentamos aqui – do PCC como organização
de luta dos opressores contra os oprimidos, de democratização do sistema, inexistência de
líderes, igualdade entre todos, participação coletiva na definição de regras de conduta e de
9
que têm mais responsabilidade do que os outros – para manutenção da ordem
e da harmonia – e que, além disso, são perseguidos pelo Estado, correndo
risco de ir para a “tranca16” a qualquer momento. Além disso, criticam
duramente a nomenclatura utilizada pelos líderes anteriores, que se auto
denominavam “generais”.
Diretamente decorrente dos “debates”, foram instituídos tribunais17
destinados a promover o julgamento de pessoas acusadas de infração às
normas do Partido. Nestes casos, é realizado um debate prévio, em que
participam o acusado, testemunhas que eventualmente existam, tanto de
acusação quanto de defesa, e lideranças dos vários escalões do PCC, que ao
final decidirão a sorte do acusado. De acordo com Bohannan (1966, p. 169) o
tribunal se constitui como um corpo especializado para resolver disputas e
proceder à correção do ato, o que pode denotar o acordo e/ou a punição do
sujeito. Com a instituição dos tribunais, embora a estrutura da organização
continue verticalizada, há uma participação maior das instâncias intermediárias
de poder na discussão dos procedimentos corretivos adotados, sendo que a
“sentença” passa a ser uma decisão coletiva e não mais de um único indivíduo – ainda que, obviamente, as opiniões tenham pesos distintos, de acordo com a
posição ocupada na hierarquia da facção.
Conclusão
aplicação das punições - pode ser também percebido no depoimento de Marcola para a CPI do
Tráfico de Armas, realizado em 2006, em Presidente Bernardes. Este depoimento foi tomado
em caráter sigiloso e não está disponível na página oficial da referida Comissão Parlamentar
de Inquérito.
16 “Tranca” é como eles se referem às unidades que aplicam o RDD e também à Presidente
Venceslau I (destinada ao cumprimento de castigo, onde os presos só podem permanecer por
30 dias) e Venceslau II, que possuem um regime mais rígido do que as outras penitenciárias,
mas muito mais flexível do que o RDD. Nesta unidade se encontram, atualmente, toda a
liderança da organização e, por esse motivo, é chamada de “Parque dos Monstros”. Muitas
unidades prisionais, ao identificar uma liderança muito expressiva e considerada “negativa” – a
definição do que é ser um líder negativo não é claramente expressa - promove a remoção do
referido preso para lá. Por este motivo, Venceslau II tem uma população de mais de 800
presos, todos considerados “líderes” do PCC.
17 Ao que parece, inicialmente os tribunais tinham como objetivo julgar os membros e os
colaboradores da facção acusados de transgressão ao estatuto. Novos documentos
encontrados pela polícia, bem como escutas telefônicas, revelam que estes tribunais vêm se
expandindo para outras áreas de influência do PCC e estendendo seu âmbito de atuação
desde os delitos mais graves, como estupros e homicídios praticados dentro das comunidades
sob seu controle até as questões mais corriqueiras tais como, infidelidade no casamento,
pequenos furtos e brigas entre vizinhos. A atuação do PCC independe de as pessoas
envolvidas pertencerem ou não aos quadros da organização.
10
Todos estes elementos evidenciam a hegemonia do PCC no controle da
ordem prisional e, ainda, o sucesso obtido pela facção na imposição da
disciplina. Claro está que o monopólio – privado – do exercício da violência
física adquirido pela facção está consolidado. Analisando rapidamente algumas
etapas deste processo, podemos perceber que num primeiro momento, a
facção reunião para si os instrumentos materiais e financeiros18 que
possibilitaram a imposição de um domínio que, ainda que tivesse uma base de
apoio num discurso de solidariedade e união entre os presos, tinha na ameaça
da violência um instrumento central. E, ainda, esse domínio exercido pela
facção tinha um caráter essencialmente personalista, dependente do carisma e
da disposição para matar das lideranças locais. Hoje, no entanto, o poder
exercido pela organização superou a individualidade de seus líderes locais,
tanto que decisões de execução ou de espancamentos, por exemplo, não são
mais tomadas isoladamente pelo mesmo, como o fora antes. Hoje, as punições
são impostas pela e em nome da facção, ultrapassando todas as questões
pessoais e as características de lideranças isoladas. O PCC se constitui como
entidade mediadora dos conflitos sociais acima das partes, detentora da
prerrogativa de zelar pela observância das normas e impor a punição aos seus
transgressores, completando desta forma o processo de desapropriação dos
indivíduos da possibilidade de resolver seus próprios conflitos.
Hoje o PCC detém um amplo controle sobre toda a dinâmica da
administração do cotidiano prisional. Em “parceria” com os funcionários
públicos nos processos em que a participação destes é inevitável, como na
seleção de presos para postos de trabalho, ou de forma completamente
autônoma em relação à direção do estabelecimento, nos casos em que esta
abre mão, deliberadamente, em exercer o seu papel de instância responsável
pela administração e gestão dos presídios, o fato é que nada ocorre dentro das
unidades prisionais sem o aval ou, no mínimo, o conhecimento das lideranças
18 Durante a década de 1990 foram muitos os assaltos a carros-fortes e a bancos comandados
pelo PCC – o que acontece até hoje – que possibilitaram a captação de recursos, fundamental
na expansão e no fortalecimento da facção. O assalto ao banco Banespa, em 1999, é um
exemplo emblemático deste processo, onde foram roubados quase R$ 33 milhões, sendo que
parte desse valor foi destinada à facção. O mesmo ocorre com o assalto ao Banco Central de
Fortaleza, ocorrido em 2005, onde R$ 168 milhões foram roubados.
11
da facção19. Nesta nova forma de exercer o poder, o PCC utiliza ao máximo as
potencialidades de cada indivíduo preso, companheiro ou irmão.
A abordagem de Foucault (2000) nos permite uma compreensão positiva
das relações estabelecidas entre o PCC e a massa carcerária a ele submetida,
isto é, como exercício do poder com objetivos econômicos e políticos. Objetivo
econômico na medida em que mobiliza um exército de homens submissos para
trabalhar nos negócios geridos pela facção; políticos, uma vez que a
obediência garante a hegemonia da facção e a consolidação de seu domínio, o
que, inclusive, se constitui como elemento de barganha em acordos e
negociações com o Estado.
Para Foucault, ao poder não interessa expulsar os homens da vida
social e “sim gerir a [sua] vida [...], controlá-los em suas ações para que seja
possível e viável utilizá-los ao máximo”. (MACHADO, 2000, p. XVI). É desta
forma que, ao ter seu domínio consolidado, o PCC pode se permitir gerenciar e
controlar minuciosamente a vida da população carcerária com uma violência
muito menos visível, em muitos casos, imperceptível, até. Desta forma, ele
atinge seus objetivos e, ao mesmo tempo, legitima ainda mais seu poder a
partir de um discurso de afirmação da responsabilidade da facção na redução
da violência no sistema prisional, com a diminuição significativa do número de
mortos nas cadeias, de rebeliões, motins e conflitos diversos. Trata-se de um
discurso de legitimação da organização que, evidentemente, corresponde
apenas parcialmente à realidade das cadeias paulistas. De um lado, é fato que
houve uma diminuição do número de mortos e de eventos de ruptura da ordem
nas prisões (rebeliões e motins). De outro, é fato que a população carcerária se
encontra hoje sob o domínio despótico dos líderes da facção PCC. A certeza
da punição à transgressão das regras é tão forte, que esses indivíduos sabem
19 Só para citar alguns exemplos deste domínio do PCC: as lideranças da organização dentro
da respectiva unidade prisional é que indicam os presos que irão trabalhar na cozinha ou na
faxina; se entre esses trabalhadores, algum não seguir as normas do setor, qualquer que seja
o motivo, o funcionário responsável irá falar com o membro do PCC responsável pelo controle
da disciplina no local e o mesmo decidirá se haverá “demissão” ou não. Todos os presos que
chegam na unidade, após passar por uma entrevista com o diretor de disciplina, passa,
necessariamente, por uma entrevista com alguma das lideranças da organização; nesta
entrevista, o recém-chegado tem que informar nome, matrícula e as últimas unidades pelas
quais ele passou, para que o “responsável” se comunique com os “responsáveis” destes locais
para se informar se houve algum tipo de problema, se o mesmo saiu da outra unidade devendo
alguma coisa etc. Ou seja, esse sistema de comunicação entre as lideranças das unidades
prisionais forma uma rede de poder que abarca todo o sistema penitenciário, permitindo à
facção um amplo controle de seu funcionamento.
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que não podem transgredir, de forma alguma - outro fator que favorece a
diminuição do número de assassinatos. Como o próprio Foucault (2003, p. 311)
observa, os controles psicológicos são mais eficazes que os físicos.
O PCC ocupa, hoje, uma posição privilegiada na rede de poder que
atravessa o sistema prisional, que lhe permite o “governo dos homens pelos
homens”. (FOUCAULT, 2003, p. 385). Como vimos anteriormente, um dos
traços dessa racionalidade intrínseca a dominação exercida pelo PCC é a
redução dos aspectos simbólicos e mais visíveis da violência imposta pela
facção àqueles que a ela são submetidos e a conformação de um discurso que
procura descaracterizar a natureza despótica desta dominação e construir uma
imagem de uma organização pautada por formas democráticas e voluntária de
participação dos presos. A realidade, no entanto, é complemente diferente. De
acordo com Foucault (2003, p. 319) “a violência encontra sua ancoragem mais
profunda e extrai sua permanência da forma de racionalidade que utilizamos”.
Assim, se ao PCC é dada a prerrogativa de se abster de demonstrar sua força
e seu poder dentro das prisões, é porque o seu domínio está tão consolidado e
tão consistente que se torna desnecessário e até contraproducente fazer da
eliminação dos seus inimigos ou adversários uma demonstração pública da sua
força. A violência não precisa mais ser publicizada conquanto ela esteja
implícita no gerenciamento da massa carcerária efetivado pelo PCC e está
mais potente e mais fulminante do que nunca, uma vez que é posta em prática
através dos múltiplos e silenciosos processos de controle efetivados no
cotidiano da prisão, e não mais através de explosões de força bruta que tinham
o propósito de afirmação do poder.
Tanto o aumento de rebeliões e de homicídios entre o período de 1994 a
2006, como a queda destes eventos a partir de meados deste mesmo ano,
devem ser compreendidos como produto da reconfiguração no poder no
universo carcerário. Esta reconfiguração ocorreu com a desapropriação dos
indivíduos da prerrogativa de utilização da força física e a progressiva
centralização do uso da violência pela organização, na medida em que se
expandia.
Neste sentido, a violência adquire uma forma e uma função peculiar em
cada um dos dois momentos deste processo. No momento de expansão e
consolidação do PCC (1994-2006) a violência se constitui como instrumento da
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conquista e demarcação de territórios com a necessidade de eliminação
daqueles que se recusavam a aceitar o seu domínio, além de possuir um
caráter simbólico de demonstração do poder. Num terceiro momento, porém,
com a consolidação do seu domínio, a espetacularização da violência torna-se
desnecessária e contraproducente. Hoje, a violência não precisa mais ser
publicizada conquanto ela esteja implícita no gerenciamento da massa
carcerária efetivado pelo PCC e está mais potente do que nunca, uma vez que
é posta em prática através dos múltiplos e silenciosos processos de controle
efetivados no cotidiano da prisão.
Bibliografia
BALANDIER, G. (1982) O poder em cena. Brasília: Editora UnB.
BOHANNAN, Paul. (1966) “A antropologia e a lei” In Panorama da Antropologia
(vários autores). São Paulo: Editora Fundo de Cultura.
FOUCAULT, M. (2000) Vigiar e Punir: História da violência nas prisões.
Petrópolis: Vozes.
______. (2003) Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
GIRARD, R. (1998) A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra.
MACHADO, R. (2000) “Introdução: por uma genealogia do poder”. In:
Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, pp. VII-XXIII. A dissertação da autora Camila Caldeira Nunes Dias
A ineficiência do Estado contra o crime organizado decorre da corrupção de agentes públicos, da falha na implementação de políticas públicas que combatam a desigualdade social e a exclusão, e da falta de recursos e integração entre as instituições de segurança pública e o sistema de justiça. As organizações criminosas se infiltram em setores da economia e corrompem o poder público, dificultando a ação estatal e criando um ambiente de impunidade e insegurança jurídica.
As organizações criminosas infiltram-se no sistema público oferecendo benefícios a funcionários para obter vantagens em suas atividades ilícitas. A corrupção é uma barreira para a ação do Estado, paralisando a Justiça e a atuação das polícias.
Existe uma falta de cooperação e integração efetiva entre as diferentes instituições de segurança pública e o sistema judiciário, o que dificulta a troca de informações e a coordenação de ações contra o crime organizado.
O crime organizado passa a competir com o Estado na capacidade de governar e de fazer valer a lei, enfraquecendo as instituições democráticas. Segundo especialistas nos veículos de imprensa no Brasil.
Triste estado brasileiro.
Confira a noticia no Portal G1 da Rede Globo.https://g1.globo.com/sp/sao-
E assim caminha a humanidade.
Imagem ; Portal G1 da Rede Globo.
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