A distinção entre os setores público e privado no Brasil é fundamental e se baseia em diferentes critérios, como os objetivos, a forma de atuação, o regime jurídico e a origem dos recursos.
Setor público
O setor público engloba o Estado e suas instituições, que atuam para garantir o bem-estar coletivo e o interesse público.
Características:
Objetivo: Promover o bem-estar social, prestar serviços essenciais e resolver problemas da sociedade, sem visar o lucro.
Regime jurídico: É regido pelo Direito Público, que impõe o princípio da legalidade estrita, ou seja, a administração pública só pode fazer o que a lei expressamente autoriza.
Ingresso: O acesso aos cargos e empregos públicos se dá, em regra, por concurso público, que busca garantir a isonomia e a seleção dos candidatos por mérito.
Recursos: É financiado principalmente por impostos e outras receitas obrigatórias, que são arrecadados da população.
Estabilidade: A maioria dos servidores públicos concursados tem estabilidade no emprego após o período probatório, o que os protege de demissões arbitrárias.
Controle: Está sujeito a controles mais rigorosos, como os do Tribunal de Contas, do Ministério Público e do Poder Legislativo, além do controle social.
Exemplos:
Ministérios, autarquias e fundações públicas.
Serviços públicos de saúde (SUS), educação e segurança.
Setor privado
O setor privado é composto por indivíduos e organizações que buscam a maximização do lucro e a satisfação de interesses individuais.
Características:
Objetivo: Gerar lucro, aumentar a participação no mercado e impulsionar o crescimento do negócio.
Regime jurídico: É regulado pelo Direito Privado (Direito Civil, Empresarial, etc.), que permite fazer tudo o que a lei não proíbe, assegurando a autonomia da vontade das partes.
Ingresso: A contratação de funcionários ocorre de forma mais flexível, por meio de processos seletivos e recrutamento, com base em indicação ou desempenho.
Recursos: Os recursos vêm da venda de produtos ou serviços, ou de investimentos privados.
Estabilidade: Não há estabilidade no emprego, e a demissão pode ocorrer por diversos motivos, incluindo desempenho insatisfatório ou crises financeiras da empresa.
Controle: É fiscalizado principalmente pelo mercado (concorrência e demanda) e por leis trabalhistas e tributárias. Segundo a Jornalista e Mestra Edilaine Heleodoro Felix, no Quarto Período da Habilitação em Jornalismo na Comunicação Social, pelas Faculdades Integradas Alcântara Machado (FIAAM FAAM).
Confira abaixo o artigo da autora Tania Conceição Iglesias1
1Doutora em Educação pela UNICAMP. Docente do Curso de Administração da
Universidade Paranaense (UNIPAR), Paranavaí, PR, Brasil.
CONCEITOS DE PÚBLICO E
PRIVADO: UM OLHAR SOB A
LUZ DE HABERMAS, FREYRE
E HOLANDA
CONCEPTS OF PUBLIC AND PRIVATE: A LOOK FROM THE
PERSPECTIVE OF HABERMAS, FREYRE AND HOLANDA
CONCEPTOS DE LO PÚBLICO Y LO PRIVADO: UNA MIRADA
BAJO LA LUZ DE HABERMAS, FREYRE Y HOLANDA
Tania Conceição Iglesias1
1Doutora em Educação pela UNICAMP. Docente do Curso de Administração da
Universidade Paranaense (UNIPAR), Paranavaí, PR, Brasil.
Resumo: O texto aborda o tema público e privado em sua relação com a política. Amparando
se nos estudos clássicos de Habermas, Freyre e Holanda sobre esfera pública, bem como a
formação cultural brasileira, toma o processo histórico de construção de tais conceitos com
o propósito de compreender as atuais formas de relacionamento entre o campo político e a
sociedade. O trabalho ajuda a entender como foi instaurada a lógica do particular sobre o
geral que assegura interesses privados nos setores políticos públicos no Brasil.
Palavras-chave: Público: Privado; Estado.
sectors in Brazil.
Keywords: Public; Private; State.
Abstract: The text addresses public and private issues related to Brazilian public politics.
Supported by the classical studies of Habermas, Freyre and Holanda on the public sphere,
and by Brazilian cultural development, it addresses the historical processes that led to the
construction of these concepts, in order to achieve a better understanding of the relationship
between the political field and civil society. This study aims to elucidate how the logic of
individual-over-general was established, which assures private interests in the public political
Resumen: El texto aborda el tema público y privado en su relación con la esfera política.
Amparándose en los estudios clásicos de Habermas, Freyre y Holanda sobre “Esfera Pública”
y sobre la formación cultural brasileña, toma el proceso histórico de construcción de tales
conceptos con el propósito de comprender las actuales formas de relación entre el campo
político y la sociedad. El trabajo ayuda a entender cómo se instauró la lógica de lo particular
sobre lo general que asegura intereses privados en los sectores políticos públicos en Brasil.
Palabras Clave: Público; Privada; Estado.
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ISSN: 1984 -7114
Introdução
A relação entre o Estado e a sociedade, delimitada ao entendimento da
indistinção entre as esferas pública e privada, é um tema constante no debate do campo
político brasileiro. A falta de clareza dos seus limites conduz, consequentemente, ao
questionamento das fronteiras conceituais que os separa e se constitui em elemento
fundamental para a análise da atualidade, levando, pois, à necessidade de se estudar o
padrão concreto do relacionamento entre o Estado, as instituições políticas e a sociedade,
buscando nessas interfaces a compreensão de ações que se apresentam incongruentes,
como entre muitos outros que se poderiam citar, a presença assegurada do ensino
religioso na escola pública em um Estado constitucionalmente laico. Neste caso, um
interesse evidentemente particular e subjetivo empreendido e justificado em nome da
democratização, dita como processo permanente e inacabado rumo à concretização
da soberania popular e em nome do direito à liberdade que, justamente, abona o seu
contrário, a saber, o asseguramento da isenção do Estado nessa matéria.
Compreender tais contradições é tarefa permanentemente ensejada, neste sentido,
esse artigo objetiva contribuir com uma análise, à luz das ideias de Jürgen Habermas
(1929 -), Gilberto Freyre (1900-1987) e Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), dos
conceitos de público e privado, com o propósito de compreender a dificuldade no
estabelecimento do limite de tais esferas no campo político no Brasil. Isso demanda
entender a evolução do conceito de público e privado ao longo de sua formação cultural
e histórica.
A abordagem não pretende um mergulho na historiografia dos autores, apenas
fazer uma releitura dos conceitos sob a orientação das suas contribuições intelectuais.
Desse modo, tomar-se-á a concepção de esfera pública e privada em uma perspectiva
sociológica, qual seja: esfera pública, como poder público, que “[...] deve seu atributo de
ser público à sua tarefa de promover o bem público, o bem comum a todos os cidadãos”
(HABERMAS, 1984, p. 14); e esfera privada como a sociedade civil, a qual as ações da
esfera pública devem convergir. Para tal, serão usados os conceitos de Jürgen Habermas
(1929 -89 anos), cuja abordagem se considera apropriada para o tratamento da questão.
Para Habermas (1984), a ideia de uma esfera pública apossada e manipulada pelos
diversos grupos sociais é colocada em questão. Para ele, a constatação da existência de
uma concorrência pública entre os diferentes grupos organizados pela realização de seus
interesses representa apenas a dimensão visível das disputas políticas nas sociedades
contemporâneas. Na esfera pública política, mediante a teoria discursiva de Habermas,
ocorrem dois processos concomitantes, quais sejam: o uso manipulativo do poder da
mídia para obtenção de lealdades e, por outro lado, a geração comunicativa de poder
legítimo. A imagem de espaço público nessa abordagem mostra que, para este, dirigem
se tanto visões de mundo - as interpretações e as reivindicações criadas no mundo da
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vida, a partir de relações comunicativas voltadas para o entendimento - quanto tentativas
de concretizar interesses particularistas.
Cabe, dessa forma, à esfera pública atuar como instância intermediadora entre os
impulsos comunicativos gerados no mundo da vida, com os órgãos competentes que
articulam institucionalmente o processo de formação da vontade política. A captação
das interpretações e das reivindicações gestadas no mundo da vida, nos domínios da
vida privada, é feita pela sociedade civil. A essa categoria ele entende as diferentes
associações voluntárias que canalizam essas questões para a esfera pública política.
Entretanto, o poder conferido à sociedade civil não pode estar associado à ideia de ter o
Estado como sua corporificação institucional, ela deve se manter no campo da construção
da soberania popular. Somente por meio da mediação dos processos institucionais de
formação de opinião e da vontade política é que o poder da influência da sociedade
civil deve chegar ao Estado, contribuindo para a introdução de impulsos geradores de
alteração nos parâmetros constitucionais para a formação da vontade política e não para
utilização do espaço público para a conquista de lealdades por entidades privadas.
Dessa forma, amparando-se nos estudos de Habermas, principalmente “Mudança
Estrutural na Esfera Pública”, buscar-se-á, primeiramente, entender como se deu o
processo histórico de construção dos conceitos de público e privado nas relações sociais
no Brasil.
Desenvolvimento
Público e Privado: Surgimento e Evolução
A carência de delimitação dos conceitos de esfera pública e privada não é estática.
Ela foi construída e requer, para sua análise, a busca da evolução histórica que as
configurou. Habermas (1984) parte da dificuldade para entender o próprio termo devido
à multiplicidade de significados que esse possui. Ele afirma que uma análise histórico
sociológica do termo ‘público’ e ‘esfera pública’ poderia canalizar as diversas camadas
verbais históricas até seu conceito sociológico, e é a isso que se dedica o autor. Ele inicia
por demonstrar os vários significados do termo “público”, mostrando que o conceito de
esfera e opinião pública, como hoje é conhecido, surgiu no século XVIII. Sustenta que
a palavra “publicité” começou a ser empregada contraposta à autoridade do Estado e
da Igreja, aplicada à vida social e privada da burguesia, que abria seu caminho devido à
expansão comercial e industrial, bem como a ampliação da mercantilização das coisas
e das ideias. Dessa forma, o termo público “[...] pertence à ‘sociedade burguesa’ que, na
mesma época, estabelece-se como o setor da troca de mercadorias e de um trabalho
social conforme leis próprias” (HABERMAS, 1984, p.15).
Entretanto, os conceitos de espaço público em contraposição ao espaço privado já
são aplicados desde a antiguidade1, quando o espaço privado era o espaço doméstico,
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e o poder era exercido pelo dono da casa sobre as mulheres, filhos e escravos. A esfera
pública política era vista como um reino de liberdade que se expressava em direitos
iguais para todos os cidadãos, a participar diretamente nos assuntos políticos.
Esse modelo da esfera pública helênica, tal como ele nos foi estilizadamente transmitido pela
interpretação que os gregos deram de si mesmos, partilha, desde a Renascença, normativa – até os
nossos dias. Não é a formação social que lhe é subjacente, mas o próprio modelo ideológico é que
se manteve ao longo dos séculos. A sua continuidade, uma continuidade exatamente nos termos da
história das idéias. Inicialmente, ao longo de toda a Idade Média, foram transmitidas as categorias de
público e de privado nas definições do Direito Romano: a esfera pública como res pública. É verdade
que eles só passam a ter novamente uma efetiva aplicação processual jurídica com o surgimento
do estado moderno e com aquela esfera da sociedade civil separada dele. (HABERMAS, 1984, p.17).
As características da dominação feudal das relações sociais e jurídicas da Idade
Média restringiram o conceito de privado, que só assumiu alguma relevância com a
ascensão social e econômica da burguesia renascentista, quando a esfera pública
burguesa passou a ser entendida como a esfera das pessoas privadas reunidas por
interesses comuns. Foi no movimento de desagregação dos poderes, ou seja, quando se
dá a divisão entre elementos públicos e privados, que os poderes feudais da Igreja e a
autoridade senhorial convertem-se em assunto privado.
São bastante conhecidas as grandes tendências que se impõe até o final do século XVIII. Os poderes
feudais, Igreja, realeza e nobreza – dos quais dependem diretamente as representatividades
públicas – decompõem-se ao longo do processo de polarização; por fim, cindem-se em, de um
lado, elementos privados e, do outro, em elementos públicos. A posição da Igreja modifica-se com
a reforma; a ligação que ela representa com a autoridade divina, re-ligião, torna-se coisa privada.
A assim chamada liberdade de crença assegurava historicamente a primeira esfera da autonomia
privada; a própria Igreja continua a existir como uma corporação de Direito público entre outras.
[...] Finalmente, dos estamentos desenvolve-se os elementos de dominação corporativa a órgãos do
poder público, o parlamento (e, por outro lado, um poder judiciário); os elementos das corporações
profissionais, à medida que são vigentes nas corporações urbanas e servem para operar certas
distinções nos estamentos rurais, evoluem para a esfera da “sociedade burguesa”, que há de se
contrapor ao Estado como genuíno setor da autonomia privada (HABERMAS, 1984, p. 24).
Dessa forma, o burguês torna-se um homem privado e independente. Ao haver a
separação e ao assumir como tarefa política principal a regulação social do território e
dos negócios, o Estado começa também a delimitar os domínios da esfera pública e da
esfera privada.
Na sua origem, o termo público remete então à esfera da coletividade e ao exercício
do poder, à sociedade dos iguais. Em contrapartida, o privado se relaciona com as esferas
particulares, à sociedade dos desiguais. Porém, historicamente, essas relações sofreram
significativas transformações. Com o tempo, estabelecem-se relações coercitivas entre o
rei e os vassalos por meio da imposição de normas que definem o comportamento do
súdito ou do cidadão e, como consequência, o espaço público deixa de ser a arena em
que se dão as relações entre iguais, como ocorria na pólis grega, e passa a ser o espaço
em que ocorrem as relações entre os desiguais, ou seja, o espaço em que o governo
impõe regulações aos governados.
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Se o que regula as relações entre o Estado e a sociedade são as leis, o que regula
as relações entre os participantes do mercado é o contrato e, nesse sentido, a esfera em
que se dão as relações entre os iguais passa a ser a sociedade privada.
É, pois, nesse contexto, que se inicia a associação entre Estado e conceito de
público, que a partir daí passou a ser pensado como espaço da representação política,
em que se dá a interação entre o governante e a sociedade e a dicotomia entre bens
públicos e bens privados.
Mas, para Habermas (1984), devido à ampliação da esfera pública, esse modelo
construído ao longo do tempo já está há muito em decadência. Quanto mais ela se amplia,
mais tem perdido força. “Entrementes, seus fundamentos sociais estão, no entanto, há
cerca de um século novamente se diluindo; tendências à decadência da esfera pública
não se deixam mais desconhecer” (HABERMAS, 1984, p. 17). Todavia, entende que a
esfera pública, mesmo que hoje se apresente de forma confusa, ainda se constitui um
importante princípio de ordenamento jurídico.
Caso seja possível entender historicamente, em sua estrutura, a complexão do que hoje, de um
modo tanto confuso, subsumimos sob o título de “esfera pública”, podemos então esperar, além
de uma explicação sociológica do conceito, conseguir entender sistematicamente a nossa própria
sociedade a partir de uma de suas categorias centrais (HABERMAS, 1984, p. 17).
O autor entende que o embaralhamento das fronteiras entre público e privado deve
se, em parte, ao desenvolvimento econômico e social do século XIX2. Os acontecimentos
desse século levaram a uma crescente intervenção do Estado na sociedade e na esfera
privada como protetor e mediador de conflitos. O Estado, entre outras, entrou na
sociedade privada, principalmente por meio da regulação no comércio, nas relações de
trabalho e no ensino, identificando-se ainda mais com a esfera pública burguesa, porque
essa categoria passou a intervir politicamente nas questões, impondo princípios e regras
que deram origem, segundo Habermas (1984), ao Estado Liberal de Direito. “O Estado
de Direito enquanto Estado burguês estabeleceu a esfera pública atuando politicamente
como órgão do Estado para assegurar institucionalmente o vínculo entre a lei e a opinião
pública” (HABERMAS, 1984, p. 101). A ideia da vinculação de toda a atividade do Estado
a um poder normativo passa a ser legitimada mediante a opinião pública, eliminando
a ideia de Estado como instrumento de dominação e autenticando o Estado de Direito.
O Estado de Direito burguês, com cujo auxílio as pessoas privadas, segundo os critérios de sua opinião
pública, deveriam traduzir dominação em razão, tende efetivamente a ser reduzido à sociedade civil
burguesa, a ser de algum modo “confundido” com ela. Onde, porém, o estamento privado, enquanto
tal “é levado a participar da coisa pública no poder legislativo”, a desorganização da sociedade
burguesa deveria ter sua continuidade no Estado. Se o sistema antagônico das necessidades está
fragmentado em interesses particulares, uma esfera pública das pessoas privadas politicamente
ativas levaria a um opinar e querer inorgânico e ao mero poder da massa contra o Estado orgânico
(HABERMAS, 1984, p. 144).
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Assim, em uma sociedade na qual subsistem vários e diferentes privados, o poder
público não pode atender apenas o interesse de uma pequena parcela. A construção
de uma esfera pública se expressa em uma abrangente e complicada rede de interesses
privados. Quando uma pequena parcela privada, em detrimento das demais, busca
associar seus interesses particulares com o interesse público, universalizando para todos
seus valores e cultura, dá-se a substituição do público pelo privado ou, especificamente,
a privatização do público. Por outro lado, quando a esfera pública institucionaliza esses
interesses particulares para toda a sociedade, está também tornando público o que é
privado, gerando, dessa forma, a confusão entre essas duas esferas.
Com a crescente complexidade da administração do Estado e da sociedade e com
a transformação do Estado Liberal de Direito em Estado da Social Democracia, cresce
também a necessidade de racionalização, que requer a mediação, que passa a constituir
se elemento fundamental entre as esferas do poder. “[...] o mandamento da ‘publicidade’
passa a ser estendido através dos órgãos do Estado a todas as organizações” (HABERMAS,
1984, p. 269). O autor coloca em dúvida a efetividade do mandamento democrático
dessa publicidade, ele questiona até que ponto é possível a racionalização da dominação
política e do poder social pretendida pela social-democracia.
Um antagonismo de interesses estruturalmente insuperável iria colocar limites muito estreitos a uma
esfera pública organizada, na social-democracia [...] a relação do poder por pressões antagônicas
exercidas de algum modo publicamente gera, na melhor das hipóteses, um precário equilíbrio de
interesses, apoiados por constelações temporárias de poder, que fundamentalmente não dispõe
da racionalidade de acordo com os padrões do interesse geral. [...] É bem aberta a luta entre um
jornalismo crítico e a publicidade jornalística que é exercida apenas com fins manipulativos; a
imposição de ‘publicidade’ dada pela social-democracia quanto ao exercício legítimo do poder e
do equilíbrio entre os Poderes não é, de nenhum modo, segura nem garantida frente a publicidade
estabelecida apenas com fins aclamativos (HABERMAS, 1984, p. 272-73).
Não se percebe, nessas ideias de Habermas, uma distinção conceitual das fronteiras
do público e do privado. A esfera pública, para ele, apresenta-se perpassando todos os
níveis da sociedade e incorporando todos os discursos, visões de mundo e interpretações
que adquirem visibilidade e expressão pública. O mérito político e normativo atribuído
a tal esfera é a afirmação de uma, em vez de várias esferas públicas, cujos diferentes
grupos constitutivos de uma sociedade plural e diversa formulam problemas e constroem
soluções comuns. Portanto, na visão de Habermas (1984), a esfera pública conforma o
contexto público comunicativo, cujos membros de uma comunidade política pluralizada
constituem, além dos acordos em torno das regras que devem reger a vida comum, as
condições de possibilidade da convivência e da tolerância.
O Processo Brasileiro
O tema esfera pública nos estudos da sociologia e da historiografia política brasileira
tem sido tratado a partir de sua inexistência. Os estudos clássicos sobre o assunto
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apresentam a esfera privada de tal forma ampliada, que a lógica das relações pessoais
e patriarcais são levadas para o plano público, condicionando os relacionamentos nessa
esfera, promovendo a indistinção entre o público e privado.
Existem clássicos estudos sobre a formação histórica e cultural brasileira3, não
existindo, por essa razão, necessidade de reconstruir aqui o processo de colonização
e desenvolvimento do país. O que interessa é entender a organização política e
administrativa e as relações entre esfera pública e esfera privada dessa sociedade.
Nesse sentido, contribui os estudos de Gilberto Freyre e de Sergio Buarque de Holanda,
porque ambos, cada um à sua forma, buscaram, nos aspectos culturais, compreender
a construção da nação brasileira e, por conseguinte, sua relação com a construção da
esfera pública política, o que ajuda a atender as atuais formas de relacionamento entre
o campo político e a sociedade.
Freyre4 (1977) descreve os efeitos, no espaço político, da lógica do poder e da
cultura política patriarcal. Ele busca essa categoria no regime senhorial rural, em que
o patriarca rege a vida no campo e, por extensão, mantém uma fronteira política bem
definida contra a intervenção do poder colonial. O poder patriarcal funciona como um
poder soberano sob domínio senhorial. Ele é absoluto na administração da justiça da
família e é exercido por homens maduros sobre os escravos, a população plebeia, a
mulher e os filhos. No Brasil, segundo o autor, devido principalmente à grande distância
social, esse regime chegou ao seu limite ortodoxo, tendo o senhor tomado para si até o
domínio sobre a vida e a morte daqueles que viviam sobre o seu comando.
A família, sob a forma patriarcal, ou tutelar, tem sido no Brasil uma dessas grandes forças permanentes.
Em torno dela é que os principais acontecimentos brasileiros giraram durante quatro séculos; e
não em torno dos reis e dos bispos, de chefes de Estado ou de chefes de Igreja. Tudo indica que
a família entre nós não deixará completamente de ser a influência senão criadora, conservadora e
disseminadora de valores, que foi na sua fase patriarcal. O personalismo do brasileiro vem de sua
formação patriarcal ao mesmo tempo que cristã – um cristianismo colorido pelo islamismo e por
outras formas africanas de religiosidade inseparáveis da situação familial da pessoa; e dificilmente
desaparecerá de qualquer de nós. Como família patriarcal, ou poder tutelar, porém, a energia da
família está quase extinta no Brasil; e sua missão bem ou mal cumprida. Suas sobrevivências terão,
porém, vida longa e talvez eterna não tanto na paisagem quanto no caráter e na própria vida política
do brasileiro (FREYRE, 1977).
O poder patriarcal existe em um espaço bem definido. Trata-se de uma ordem
simbólica, de um poder de produção da vida política que sustenta a soberania do campo
sobre a cidade. A soberania da casa-grande sobre o sobrado, a Igreja e as instituições
políticas. Enfim, o regime econômico rural privado articula a soberania do interesse
privado sobre o público.
Porém, segundo o autor, o patriarcalismo não foi absoluto. O poder jesuítico
também foi capaz de criar, por meio da produção de subjetividades, desde os tempos
coloniais, uma cultura política capaz de se contrapor a cultura política patriarcal, isto é,
uma cultura capaz de substituir a cultura política patriarcal.
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Procuraram enfraquecer a autoridade do pater-famílias em duas de suas raízes mais poderosas [...].
Mas não foi somente da religiosidade da família que encontraram os jesuítas o clima favorável a sua
ação educativa, tanto mais eficaz, nessa atmosfera de servidão, quando no amparo e na força da
Igreja, o escravo, a mulher e o filho deparavam um contrapeso aos excessos da autoridade doméstica
e patriarcal, com que nenhum outro poder podia defrontar senão aquele em nome do qual falava o
missionário. (AZEVEDO 1996, p. 504)
O poder jesuítico colaborou como um exercício pedagógico, principalmente
sobre os meninos para contrapor o poder patriarcal que foi, segundo Freyre (1977),
agenciado por D. Pedro II para pôr um fim na tutela do senhor político. É verdade que
os esforços dos jesuítas foram pela cristianização, porém o que Freyre tenta mostrar é
que a autoridade e a influência cultural que os jesuítas exerceram ultrapassaram o poder
espiritual, projetando-se em todos os domínios e colaborando com a implantação da
cultura política formal no Brasil.
Pedro II foi, entretanto o protetor do moço contra o velho, no conflito que caracterizou o seu reinado,
entre o patriarcado rural e as novas gerações de bacharéis e doutores [...] devendo-se acrescentar
a esse fato o dos moços representarem a nova ordem social e jurídica, que o imperador encarnava,
contra os grandes interesses do patriarcado agrário, às vezes turbulento e separatista, antinacional
e antijurídico (FREYRE, 1977, p. 82).
Por meio das ideias de Freyre, é possível apreender como as regras do universo
privado se tornaram válidas para a esfera pública, porque permitem visualizar como
foi instaurada a lógica do particular sobre o geral, que predominou nas organizações
das normas públicas, contribuindo, dessa forma, para a análise do atual quadro político
brasileiro e para o favorecimento de interesses privados nos setores políticos públicos.
Nessa mesma linha de pensamento, qual seja, o da busca da caracterização de
uma identidade nacional que explique a formatação da esfera pública política brasileira,
também contribuem as ideias de Sérgio Buarque de Holanda5. Para o autor, o Estado
deveria simbolizar o triunfo do geral sobre o particular, do intelectual sobre o material.
Para se constituir de forma expressiva e justa ele deve desprezar todas as particularidades
e subjetividades, enfim deve ser impessoal e isento. Assim, o Estado não pode ser uma
mera gradação da família, ao contrário, ele deve ser, nesse sentido, até a oposição a ela.
O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos
agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe,
entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma
oposição (HOLANDA, 1988, p. 101).
Os entraves para a constituição do Estado democrático são, na visão do autor, a
persistência do patriarcalismo e do ruralismo que criaram, devido às ações intimistas
das ações sociais, a indistinção entre os domínios do público e do privado. Entende essa
visão como uma das barreiras para a idealização de uma sociedade igualitária, porque
a valorização da esfera familiar provoca a transformação da mesma em uma referência
moral que acaba sendo transferida para a esfera do público. A família assegura a
manutenção do íntimo, do particular e dessa forma:
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O quadro do familiar torna-se, assim, tão poderoso e exigente, que sua sombra persegue os indivíduos
mesmo fora do recinto doméstico. A entidade privada precede sempre, neles, a entidade pública.
A nostalgia dessa organização compacta, única e intransferível, onde prevalecem necessariamente
as preferências fundadas em laços afetivos, não podia deixar de marcar nossa sociedade, nossa
vida pública, todas as nossas atividades. Representando, como já se notou acima, único setor onde
o princípio de autoridade é indisputado, a família colonial fornecia a idéia mais normal do poder,
da respeitabilidade, da obediência e da coerção entre os homens. O resultado era predominarem,
em toda vida social, sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e
antipolítica, uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família (HOLANDA, 1998, p. 51).
Assim, é na cultura personalista do brasileiro que Holanda vai buscar a categoria
analítica para a compreensão da configuração da esfera pública. Para ele, no contexto
brasileiro, a pessoa sempre espera ser reconhecida, sempre existe a perspectiva de que os
casos sejam personalizados. Para isso, ele recorre à concepção de cordialidade brasileira6
e desenvolve o conceito de homem cordial, trazendo essa expressão para o âmbito da
análise da cultura política nacional.
Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo ‘o homem cordial’. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes
tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter
brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões
de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas atitudes
possam significar ‘boas maneiras’ de civilidade. São, antes de tudo expressões legítimas de um
fundo emotivo extremamente rico e transbordante. [...] Nossa forma ordinária de convívio social é,
no fundo, justamente o contrário da polidez. [...] Além disso a polidez é, de algum modo, organização
de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo
servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual
preservar intatas suas sensibilidades e suas emoções (HOLANDA, 1988, p. 106).
O homem cordial é, dessa forma, o homem que coloca, acima de tudo, os laços
de amizade, desprezando a universalidade dos direitos. Assim, o que o distingue não é a
bondade, mas a conveniência. A construção desse homem é, segundo o autor, resultado
da cultura personalista própria da sociedade brasileira e simboliza o predomínio das
relações humanas mais simples e diretas, sugerindo um distanciamento essencial num
mundo diferente do âmbito familiar. A cordialidade do brasileiro pode ser entendida
como uma estratégia que fora naturalizada numa sociedade cuja esfera pública sempre
permaneceu instável.
É interessante a relação mostrada pelo autor entre o homem cordial e a religião. Ele
afirma que no Brasil o sentimento religioso é totalmente dotado de caráter personalista,
em que o indivíduo tem uma relação íntima com o seu santo. “[...] Todos, fidalgos e plebeus,
querem estar em intimidade com as sagradas criaturas e o próprio Deus” (HOLANDA,
1988, p. 110). Ele exemplifica essa relação mostrando a existência, em cada casa, de
capelas particulares com seus altares, onde o culto aos santos era feito individualmente
segundo a devoção de cada um aos seus eleitos. “O que representa semelhante atitude
é uma transposição característica do domínio religioso desse horror as distâncias que
parece constituir, ao menos até agora, o traço mais específico do espírito brasileiro”
(HOLANDA, 1988, p. 110).
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Outra característica apontada pelo autor sobre a forma de ser do brasileiro é a
vontade de mandar e a disposição para obedecer a ordens, decorrentes da sua formação
paternalista. Porém, para ele, nem sempre essa obediência serviu como um princípio que
sustentasse uma associação coletiva. Entende que a relação do brasileiro com o Estado
ainda é muito servil e submissa. Assim, para o brasileiro, o Estado é uma entidade próxima,
presente em todas as esferas privadas do indivíduo, mas ainda é visto como uma espécie
de pai, de quem se deve esperar tudo, desde que se passe a respeitá-lo. Nesse sentido, o
autor pensa que, no Brasil, não houve um desenvolvimento necessário de uma cidadania
que pudesse promover e sustentar um Estado democrático, porque existe uma profunda
incompatibilidade entre o ideário liberal impessoal e o caráter restrito dos sentimentos
que se fundamentam em preferências.
Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós. Só
assimilamos efetivamente esses princípios até onde coincidiram com a negação pura e simples de
uma autoridade incômoda, confirmando nosso instintivo horror às hierarquias e permitindo tratar
com familiaridade os governantes. A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido.
Uma aristocracia rural e semifeudal que importou e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos
seus direitos e privilégios (HOLANDA, 1988, p. 119).
É importante frisar que se compreende que o autor não quis dizer, com essa
afirmação, que a democracia no Brasil seja um empreendimento impossível. Mas que
tem no exagerado apego às formas de convivência patrimonial, em que subsiste uma
persistência das tradições na forma centralizada de poder, uma grande barreira a ser
transposta. Para existir democracia, é preciso antes que se desenvolva uma cidadania
capaz de promover um Estado Democrático. E onde existe uma supervalorização do
âmbito familiar, este acaba provocando um esvaziamento público, porque se todos vivem
voltados para si mesmos, as questões públicas passam a ser um problema secundário.
A cidadania pressupõe, dessa forma, ultrapassar o individual. Porém os privilégios nas
relações pessoais inibem as possibilidades da eficácia de um regime democrático, porque
esse exige reconhecer que o indivíduo tem direitos e deveres universais que devem ser
respeitados e reconhecidos.
A democracia exige a existência de um espaço público em que sejam debatidos de
forma pluralista os grandes problemas da atualidade. Um espaço onde se oponham e se
respondam os discursos dos agentes políticos, sociais, religiosos, culturais e intelectuais que
constituem uma sociedade para se formar um reconhecimento mútuo das legitimidades.
Ele deve constituir o laço político que liga milhões de cidadãos anônimos, permitindo a
participação efetiva na política. A esse espaço simbólico está ligada, inexoravelmente, a
ideia de publicidade no sentido de midiatização, em que a informação produzida sobre
a opinião pública torne-se condição básica do espaço público e, como diz Habermas
(1984), da “democracia de massa”. A esfera pública conforma, assim, o contexto público
comunicativo, no qual os membros de uma comunidade política plural constituem as
condições de possibilidade da convivência e da tolerância mútua, que aceita acima de
tudo a inclusão do outro.
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Um projeto democrático em uma sociedade pluralista, diversa e desigual como
a brasileira deve assegurar que cada grupo tenha seu espaço de manifestação cultural.
Acredita que:
2002, p. 93).
O liberalismo político representa uma resposta ao desafio do pluralismo. Sua preocupação
central volta-se a um consenso fundamental que assegure liberdades iguais a todos os cidadãos,
independentemente de sua origem cultural, convicção religiosa e maneira individual de conduzir
a própria vida. O consenso que se almeja em torno de questões da justiça política não pode mais
apoiar-se sobre um ethos que perpassa a sociedade como um todo e ao qual as pessoas habituaram
pela tradição [...] Apesar da falta de um consenso substancial sobre os valores, calcados em uma
imagem de mundo aceita pela sociedade como um todo, essas pessoas apelam ontem como hoje
à convicções e normas morais, que cada um arroga devam ser partilhadas por todos (HABERMAS
Para o autor, em sociedades tradicionais, a moral era parte integrante da imagem
do mundo ontológica e tinha, por isso, grande aceitação, mas com o crescimento da
autoridade epistêmica das ciências empíricas, a suposição recíproca de uma capacidade
de julgamento moral que se observa cotidianamente exige uma explicação que não
contesta o caráter racional de argumentos morais.
Sob aspectos validativos subsiste uma incômoda assimetria entre concepção
pública de justiça e as doutrinas não públicas. É contra intuitivo que uma concepção
pública de justiça deva extrair sua autoridade moral de razões não públicas. Tudo o que é
válido também tem de poder ser publicamente justificado. Enunciados válidos merecem
reconhecimento geral a partir de razões comuns (HABERMAS, 2002, p.102).
Porém, Habermas (2002, p. 96) questiona a possibilidade de um consenso em
uma sociedade plural. “Pode surgir de razões vinculadas a cosmovisões em particular,
cujo caráter público é reconhecido reciprocamente, um consenso que sirva de base a
um uso público da razão por parte dos cidadãos de uma coletividade política?” O autor
acredita que posicionamentos racionais não implicam o ponto de vista moral, e que nem
imagens de mundo racionais venham torná-lo possível. Entretanto, também acredita que
as pessoas só podem se convencer da validação de um conceito de justiça no contexto
da sua própria imagem de mundo, não sendo provável que algum dia se chegue, dessa
forma, a se firmar um consenso abrangente.
Concepções políticas racionais que validam a precedência de valores políticos e que de tal forma
também determinam que imagens de mundo religiosas e metafísicas podem ser consideradas
racionais devem não apenas serem elaboradas sob um ponto de vista imparcial, mas também
precisam ser aceitas sob um ponto de vista como esse. Tal ponto de vista transcende as perspectivas
de participantes assumidas por cidadãos enredados no contexto de suas próprias visões de mundo.
Por isso os cidadãos só podem continuar tendo a última palavra se participarem da “formulação
dessas idéias” a partir de uma perspectiva mais ampla e subjetivamente partilhada, ou seja, se
participarem dela sob o ponto de vista moral (HABERMAS, 2002, p. 113).
Os juízos morais ganham independência em relação a contextos determinados
por visões de mundo em particular e, por conseguinte, diferenciam-se esferas privadas
e públicas, permitindo a liberdade de vida autêntica, porque a liberdade da pessoa une
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se à liberdade de todos os outros. Em uma sociedade pluralista, as reivindicações que
impliquem reflexos para as políticas públicas ou para as formas de regulação legal da
vida coletiva só podem ser justificadas e legitimadas mediante a relevância para toda a
coletividade. Porém,
[...] esse papel de fiador não pode ser transferido dos planos da formação política da vontade e da
comunicação pública ao substrato aparentemente natural de um povo pretensamente homogêneo.
Por trás de uma fachada como essa, iria esconder-se apenas a cultura hegemônica de uma parcela
dominadora da sociedade. Por razões históricas, subsiste em muitos países uma fusão de uma
cultura de maioria com determinada cultura política geral que arroga a si mesma ser reconhecida
por todos os cidadãos, independentemente da origem cultural de cada um. [...] O plano da cultura
política partilhada precisa desacoplar-se do plano das subculturas e de suas identidades, cunhadas
de uma maneira anterior à política. O anseio por uma coexistência sobre direitos iguais certamente
sofre uma restrição segundo a qual as confissões e práticas a que se dispensa proteção não podem
contradizer os princípios constitucionais vigentes (HABERMAS 2002, p. 135).
Quando uma cultura majoritária impinge às minorias sua visão de mundo,
demonstrando a falta de delimitação entre o público e o privado, isso fere diretamente
a igualdade de direitos, o que remete a questões éticas, à medida que tal atitude toca o
princípio de igualdade, ou seja, a integridade de formas de vida culturalmente diferentes.
Essa questão soa mais grave quando se trata de matérias delicadas, como o Ensino de
religião na escola pública, porque se trata de um universo de crença distribuído para
todas as formas culturais apresentadas na sociedade, visto ser a escola pública um espaço
altamente socializado, no qual convivem diversas formas de culturas.
Para a questão, Habermas (2002) propõe a “ética da ação comunicativa”, que
permitiria o surgimento de um espaço público de diálogo tecido racional e eticamente
entre os atores da sociedade. Porém é interessante observar o que diz Marilena Chauí
sobre a sociedade brasileira.
[...] a sociedade brasileira sequer chegou aos princípios liberais da igualdade formal e das liberdades
e muito menos aos ideais socialistas da igualdade econômica e social e da liberdade política e de
pensamento. Sociedade sem cidadania, profundamente autoritária, onde as relações sociais são
marcadas com o selo da hierarquia entre superiores e inferiores, mandantes e mandados, onde
prevalecem relações de favor e de clientela, onde inexiste a prática política da representação e da
participação, a sociedade brasileira sempre teve fascínio pelo populismo como forma da esfera
pública da política (CHAUÍ, 2002, p. 387).
Não resta dúvida de que a forma de criação e de desenvolvimento do Estado
brasileiro seja um condicionante poderoso em relação à indistinção das esferas políticas
públicas e privadas. Mas não se acredita que o autoritarismo paternalista brasileiro
constitua um traço congênito e insuperável.
Considerações Finais
A complexidade da questão envolvida nesta discussão demonstra que é da
superação desse padrão histórico, e de suas consequências, que depende o melhor
funcionamento das instituições públicas no Brasil.
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Por hora, o que se percebe é a existência de pelo menos duas ações urgentes a
serem empreendidas no sentido da superação da confusão entre o público e o privado
no Brasil. Primeiro, é preciso que o Estado deixe definitivamente para trás o ranço
patriarcal e autoritário, antinacional e antijurídico, como afirma Freyre (1977); e segundo,
que a sociedade supere a identificação irreal entre liberdade e privatismo, ou como diz
Holanda (1988), que deixe para trás os traços personalistas, abrindo mão de interesses
particularistas tão marcantes nas relações sociais brasileiras.
Nesse sentido, é possível vislumbrar por meio da perspectiva da teoria do discurso de
Habermas que a esfera pública se mostra cada dia mais – devido aos fluxos comunicativos – capaz para atuar no sentido da consolidação de uma esfera pública democrática. Devido
às influências nos processos decisórios que possuem os meios de comunicação críticos,
esses podem se constituir um meio alternativo de formação de opinião, a partir de situações
realmente captadas no mundo da vida e levadas para órbita da esfera pública. E que mesmo
não fazendo cessar prontamente as pressões feudalizantes e intransparentes do espaço
público, esses tendem a mover-se do entendimento encoberto de pleitos particulares para
a disputa em torno da produção de consensos realmente majoritários acerca das questões
que devem merecer tratamento público.
Referências
AZEVEDO, F. de. A Cultura Brasileira. 6. ed. Rio de Janeiro: UFRJ/UNB, 1996.
CHAUÍ, M. Público, privado, despotismo. In. NOVAES, A. Ética. São Paulo: Companhia das
Letras: Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
FREYRE, G. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do
urbano. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília, INL, 1977.
HABERMAS, J. Mudança Estrutural da Esfera Pública: Investigação quanto a uma categoria
da sociedade burguesa. Trad. Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
______. A Inclusão do outro: estudo de teoria política. Trad. George Sperber e Paulo Astor
Soethe. São Paulo: Loyola, 2002.
______. Teoria da Adaptção. Trad. Luiz Repa. In: Folha de São Paulo, Caderno Mais, Domingo,
5 de janeiro de 2003.
HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. 20. ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1988.
Notas
1 Cf. Habermas (1984, p.15), “Tratam-se de categorias de origem grega que nos foram
transmitidas em sua versão romana. Na cidade-estado grega desenvolvida, a esfera da polis
que é comum aos cidadãos livres (koiné) é rigorosamente separada da esfera do oikos, que
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é particular a cada indivíduo (idia). [...] A ordenação política baseia-se, como se sabe, na
economia escravista em forma patrimonial. Os cidadãos estão efetivamente dispensados do
trabalho produtivo; a participação na vida política depende, porém de sua autonomia privada
como senhores da casa. A esfera privada está ligada a casa não só pelo nome (grego). [...] A
posição na polis baseia-se, portanto na posição de déspota doméstico: sobre o abrigo de
sua dominação, faz-se a produção da vida, o trabalho dos escravos, o serviço das mulheres,
transcorrem o nascimento e a morte; o reino da necessidade e da transitoriedade permanece
mergulhado nas sombras da esfera privada. Contraposta a ela, destaca-se a esfera pública - e
isso era mais que evidente para os gregos - como o reino da liberdade da continuidade.
2 Cf. Habermas, (1984, p. 107), “[...] a dimensão pública como princípio de organização
de Estado de Direito burguês ainda era crível naquela fase do capitalismo. Se cada um, como
podia parecer, tinha a possibilidade de se tornar um ‘cidadão burguês’, então só burgueses
deveriam também ter acesso à esfera pública politicamente atuante, sem que, por isso, estes
perdessem seu princípio. Pelo contrário, só proprietários estavam em condições de constituir
um público que pudesse, legislativamente, defender os fundamentos da ordem da propriedade
existente; só eles tinham, toda vez, interesses privados que automaticamente convergissem
nos interesses comuns da defesa de uma sociedade civil como esfera privada. Com isso, só
deles que se podia esperar uma representação efetiva do interesse geral, pois eles não tinham
necessidade, para exercer o seu papel público, de sair de algum modo da existência privada.
3 Entre outros nomes, que se dedicaram ao estudo da formação social brasileira, quer-se
destacar o de Sérgio Buarque de Holanda, Fernando de Azevedo e Gilberto Freyre.
4 Gilberto de Mello Freyre (1900-1987) foi o escritor brasileiro que recebeu as maiores
distinções, o maior reconhecimento de universidades e instituições brasileiras e estrangeiras.
Realizou uma vasta obra de interpretação da realidade brasileira, muito especialmente no
entendimento das relações sociais na região nordestina, na qual o patriarcalismo rural e o
paternalismo senhorial são faces dominantes da realidade.
Entre suas obras mais importantes estão: Vida Social no Brasil nos Meados do Século XIX
(1922), Casa-Grande & Senzala (1933), Sobrados e Mucambos (1936), Nordeste (1937), Açúcar
(1939), Um Engenheiro Francês no Brasil (1940), Região e Tradição (1941), Sociologia (1945),
Aventura e Rotina (1953), Ordem e Progresso (1959), Guia Prático, Histórico e sentimental da
Cidade do Recife (1934), Além do Apenas Moderno (1973), Tempo Morto e Outros Tempos
(1975), retratam a terra, a vida, as coisas, os animais e os fatos do cotidiano de luta pela
organização de uma civilização nos trópicos.
5 Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) foi historiador e um dos maiores intelectuais
brasileiros. Entre suas obras mais famosas estão: “Raízes do Brasil” (1936), “Cobra de Vidro”
(1944), “Caminhos e Fronteiras” (1957) e “Visão do Paraíso” (1959).
6 Cf. Holanda, 1988, a expressão pertence a Ribeiro Couto. Ver nota p. O artigo da autora ania Conceição Iglesias1
1Doutora em Educação pela UNICAMP. Docente do Curso de Administração da
Universidade Paranaense (UNIPAR), Paranavaí, PR, Brasil.
O patrimonialismo é a forma de exercício do poder político em que a distinção entre as esferas pública e privada é inexistente ou muito tênue. Nesse sistema, o Estado é tratado como um bem pessoal, um "patrimônio" de quem está no poder, que o utiliza para atender a seus próprios interesses e aos de seu grupo, em vez de servir ao bem-comum.
Retrato de um triste Brasil.
Confira a reportagem no UOL .https://noticias.uol.com.br/
E assim caminha a humanidade
Imagem ; Site Politize.
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