“Antes eu me perguntava por que era tão estranha, por que não me encaixo, por que não era sociável como as outras pessoas da escola”. O relato, cercado por inseguranças, pela sensação de ser diferente e pelo alívio de se conhecer melhor, é de Nathalia Mattos. Ela mora em Mogi das Cruzes, é pesquisadora e, aos 32 anos, descobriu que é autista.
Comumente associado às crianças, o Transtorno do Espectro Autista (TEA) é definido pela Organização Mundial da saúde (OMS) como uma condição do neurodesenvolvimento que afeta as habilidades de comunicação social e os padrões de comportamento.
No mês de conscientização sobre o autismo, o G1 reúne depoimentos de moradores do Alto Tietê que só descobriram que estavam no espectro depois de adultos. Após anos de julgamentos e diagnósticos errados, eles resgatam qualidade de vida e mostram que o transtorno não tem cara, idade ou gênero.
“O que caracteriza o autismo pelo DSM-5 [Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais] são duas frentes. Uma é o atraso ou dificuldade da linguagem, que pode ser caracterizada pelo atraso total de fala ou qualquer outro tipo de dificuldade na comunicação e socialização”, explica a neuropsicóloga Luciana Garcia.
“A outra envolve comportamentos repetitivos ou rígidos. O paciente pode ter dificuldade de flexibilidade cognitiva. Faz tudo do mesmo jeito sempre, tem rotina definida, tudo precisa ser do mesmo jeito sempre, faz movimentos repetitivos para se regular e pode ter interesse restrito e alguns assuntos [hiperfoco]”, completa.
Antes, o TEA era definido como leve, moderado ou severo. Após a atualização do DSM-5, passou a ser dividido pela necessidade de assistência do paciente. A escala vai de 1 a 3, sendo a última para quem precisa de mais suporte para realizar tarefas do dia a dia. O termo 'síndrome de Asperger', explicado como autismo leve, também deixou de ser usado.
“São pessoas muito funcionais na vida. Elas conseguem ir bem na escola, trabalhar, se relacionam com outras pessoas, mas podem ter algum déficit social, podem ter uma dificuldade de se comunicar, que pode ser lida como timidez. Podem ter dificuldade em fazer leitura de expressão facial e até figuras de linguagem”.
A pessoa autista ainda pode enfrentar sensibilidades sensoriais – como desconforto ao toque, à luz ou a sons altos – ou problemas de funções executiva – dificuldade em iniciar ou manter determinadas tarefas. No entanto, não há regra. Luciana lembra que nenhum autista é igual ao outro e que a condição não é uma doença, logo, não tem cura.
O diagnóstico é feito por profissionais de saúde mental. O mais indicado é buscar um psicólogo especializado em autismo, que fará uma avaliação neuropsicológica sobre questões sociais, cognitivas, comportamentais e emocionais. Não há tratamento para o TEA em si, mas o diagnosticado pode apostar em terapias que o ajude a lidar melhor com seus incômodos.
Nathalia Mattos, de 32 anos, sentia que não se encaixava. Quando mais nova, seus interesses eram diferentes dos colegas da mesma idade e, sempre que tentava ser como eles, tinha a sensação de que estava atuando. Cresceu com inseguranças e achou que tudo passaria ao ser diagnosticada com bipolaridade.
“Fiz faculdade, fiz mestrado e fui fazer doutorado no Reino Unido. Quando eu estava terminando, comecei a ter crises fortes. Já tinha procurado auxílio psicológico e fui diagnosticada com depressão, ansiedade generalizada e transtorno bipolar. Passei três anos tomando remédio e não adiantava”.
A primeira vez em que a pesquisadora em geologia ouviu que poderia ser autista foi durante uma sessão de terapia. Ela duvidou, afinal, nunca tinha ouvido falar sobre adultos e muito menos mulheres com a condição. Com a dificuldade de chegar ao diagnóstico no Reino Unido, acabou deixando o assunto de lado.
Hiperfocada em estudar, quando voltou ao Brasil em 2019, foi trabalhar na universidade em que se formou. Na pandemia, voltou para a casa dos pais, em Mogi das Cruzes, e teve tempo para pensar na possibilidade de estar no espectro. Dessa vez, estava determinada.
“Eu ainda tinha as mesmas crises, mesmas inseguranças, mesmas ansiedades e o sentimento de que não me encaixo. Sempre foi difícil de lidar. Então, fui procurar outra psicóloga para fazer o teste. Fiz a avaliação neuropsicológica, que durou um mês e meio, e saiu meu resultado. Lá estava que eu era autista”, diz.
A confirmação foi um choque e, ao mesmo tempo, um alívio. Ela lembra da sensação de, finalmente, se entender. Passou a sentir que fazia parte de algo, mas não necessariamente de um padrão. Parou de tomar os medicamentos psiquiátricos e de sofrer com efeitos colaterais.
O incômodo com as quebras de rotina e surpresas, as sensibilidades à luz e aos sons altos, além da coordenação motora não muito habilidosa, fizeram sentido. Após a descoberta do autismo, Nathália tem aprendido a se aceitar a e lidar com o que a incomoda. Ela acredita que ninguém deva conviver com essa dúvida.
“Eu acho que se a pessoa tem essa suspeita, tem que ir atrás do diagnóstico. Mesmo que não seja, é interessante saber. Isso ajuda porque gente começa a reconhecer nossos limites e que não é nossa culpa não conseguir fazer algo. É muito importante, porque a gente começa a se cobrar menos. Vem um alívio”.
Para alguns, a confirmação que chega na vida adulta é resultado de um caminho longo e doloroso, traçado desde a infância, ao lado da família. É o caso de Eduardo Lamim de Oliveira, de 20 anos, e da mãe, Daniela Lamim Faria, que se lembra da primeira convulsão do filho, aos seis meses de idade, e da sequência de diagnósticos errados que vieram depois.
“Se a gente soubesse antes, se algum médico tivesse, pelo menos, mencionado a palavra autismo, nosso sofrimento teria sido pela metade. A busca é muito grande. Achar profissionais que entendem é muito difícil. Muitos não estão preparados e, quanto mais o autista cresce, menos preparados eles estão”, comenta.
Primeiro, ouviu que o filho sofria com epilepsia e os remédios controlados entraram na rotina. Em seguida, lhe disseram que o menino ainda não andava, aos 2 anos, porque tinha uma má formação nos tendões de Aquiles. Lá foram eles para a fisioterapia, equipamentos ortopédicos e aulas de natação.
O dia a dia da família de Guararema não era fácil e se tornou ainda mais pesado quando o pai de Eduardo morreu em um acidente. Viúva e com um filho de 4 anos para criar, Daniela entrou em uma rotina de terapias e consultas, pois insistia que ele era diferente. Chegou a ouvir que sua preocupação era exagerada.
Eduardo se tornou adolescente, ela se casou de novo e mudou de cidade, mas o filho não se adaptou. “Ele acabou virando amigo só de crianças e pessoas idosas. Ele começou a apanhar no colégio. Colocavam cola na cadeira para ele sentar, roubavam as roupas dele. Foram dois anos de drama e eu correndo atrás de psicólogo”.
O cenário começou a mudar quando ela ouviu de uma terapeuta que o filho tinha um falso autismo que, de tão leve, não podia ser diagnosticado. Daniela passou a ler sobre o assunto, buscou novos especialistas e estava convencida de que Eduardo estava no espectro. Ao longo da pandemia, ele passou por testes neuropsicológicos e a família teve uma resposta.
“Quando a psicóloga me deu o laudo, não estava nada bem. Ela disse que ele tinha autismo e deficiência intelectual grave. Ele é comunicativo, sociável, mas em assuntos que ele domina, como política e história. Por isso que ele tem amizade com crianças e idosos, que é onde ele consegue se comunicar com alguém”.
“Meu mundo desabou. Meu primeiro sentimento foi de muita culpa. Eu queria ter percebido antes. Fiquei dois meses olhando meu filho, em uma amargura total, pedindo perdão. Eu criei ele sozinha dos 4 aos 14 anos. Me tornei um pouco soldada. Acho que, se eu soubesse, não teria cobrado tanto”, desabafa.
Ela ficou depressiva e só viu um recomeço quando participou de um encontro on-line de mães e autistas, promovido por um psicólogo especializado no assunto. No primeiro bate-papo, quando Daniela e Eduardo se apresentaram, eles ganharam um novo propósito e perceberam que podiam usar a própria história para conscientizar e mostrar que autistas crescem.
“Meu filho chegou e sentou na mesa ao meu lado, no notebook. Elas ficaram chocadas. Quando elas viram o Eduardo se comunicando, falando para elas o nome delas em coreano, falando dos sonhos dele... Elas disseram: ‘Dani, você trouxe esperança para nós, porque agora a gente tem esperança de que o que aconteceu com seu filho, pode acontecer com a gente’”, conta emocionada.
Hoje ela se orgulha do filho, que sabe bem o que quer. Apaixonado por música, história e pela educação, ele está indo para o terceiro semestre da faculdade e quer ser professor. Também sonha em morar na Ásia.
“Curso letras com especialização em espanhol. Meu intuito é trabalhar como professor de espanhol. Depois, quando conseguir a fluência em outros idiomas, desejo trabalhar como professor de idiomas. Escolhi a profissão de professor porque a arte de ensinar e guiar os alunos me apaixona”.
“Dudu é super amoroso, porém, tem pouca concentração, dificuldades em se localizar, e em realizar tarefas diárias. Estamos trabalhando para que ele tenha cada vez mais autonomia e independência. Também quer muito namorar, [mas] procuro não pensar muito no futuro e viver o máximo com ele no presente”, diz a mãe.
Quem também tem aprendido a lidar com as diferenças após o diagnóstico é Rachel Lorencini, de 33 anos, que recebeu a confirmação no início deste ano. Como é comum entre as mulheres, ela só desconfiou que era autista depois de suspeitar que o próprio filho estava no espectro.
O menino não teve atraso na fala ou no aprendizado, olhava nos olhos e brincava como outras crianças. Era diferente de tudo o que ela, que é psiquiatra, sabia sobre TEA, mas apresentava comportamentos padronizados.
Durante a quarentena, a moradora de Arujá resolveu investigar e acabou descobrindo que o autismo vai além da infância. Percebeu que o marido também podia ter o transtorno e, por fim, se identificou. Toda a família acabou sendo diagnosticada.
“Eu sempre quis mudar de profissão. Depois do diagnóstico, isso mudou. Passei a entender que algumas coisas são características minhas. Comecei a encarar algumas coisas com mais naturalidade, pois sei que desafios vão surgir em qualquer lugar”, relata.
Rachel diz que tem habilidade em notar padrões e observa coisas que ninguém nota. Se sente desconfortável com sons altos, tem incômodos com textura de alguns alimentos e também é hiperfocada em estudar.
Embora se considere comunicativa, reconhece que iniciar ou manter interações sociais não é fácil. As características estão ligadas aos comportamentos restritivos, sensibilidades sensoriais e déficit na socialização, pontos essenciais durante a investigação do Transtorno do Espectro Autista.
“Eu sempre tive mais facilidade com o padrão, com o que se repetia. Até para fazer vestibular e concurso, eu estudo pela prova da mesma empresa. Não estudo matéria. Eu consigo, se tiver que chutar, pela forma que está escrito eu sei qual a resposta certa”.
Com o diagnóstico em mãos, Rachel percebeu que, para ela, a comunicação era treino. Foi com um dos namorados e na rotina da vida adulta que ela aprendeu a socializar melhor. A habilidade de imitar o outro, mesmo sem perceber, é chamada de 'masking' ou camuflagem, comum no autismo feminino.
“Quando eu fui para a faculdade, eu descobri que a gente tinha que falar com as pessoas e ser agradável. Só que eu sempre fui de chegar em um ambiente, observar e depois eu definir como ia ser. Chego, olho e decido qual vai ser meu papel”.
“Eu namorei com um cara que era muito legal e agradável. As pessoas gostavam demais dele. Ele era alegre, pegava nas pessoas, abraçava. Eu sei que tem muita coisa que eu faço até hoje, que aprendi vendo esse cara. Tipo, pegar nas pessoas, fazer piada e rir. Foi um treino”.
Hoje ela acredita que essas características são úteis no trabalho. A facilidade em observar os pacientes ajuda a encontrar as melhores soluções. Graças a isso, decidiu que usaria a profissão para contribuir com a causa. “Decidi que vou ajudar outras pessoas a receberem o diagnóstico”, completa. Esse é o resumo da reportagem do Portal G1 da Rede Globo, na manhã deste sábado (10).
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